quinta-feira, 16 de junho de 2011

A questão da R+C



A propósito da R+C, enquanto filosofia esotérica, tudo estará ainda por dizer. E não por falta de documentos ou de vivência histórica, sendo aliás uma das poucas vias que pode apresentar provas de actuação ininterrupta ao longo dos últimos séculos. O que se passa é mais complexo: assumindo-se diversos grupos, sobretudo a partir do século 17, como detentores da legitimidade filosófica, e sendo todos eles bastante diversos na forma de abordarem os mistérios e a gnose, criou-se uma espécie de torre de babel em que cada um fala a sua língua e em que ninguém na verdade se entende.

Posto isto, de que se fala quando se fala de filosofia R+C? Fala-se do que cada grupo entende por esse termo, mesmo que um entenda Cabala Judaica e outro Magia Operativa: é o caso da R+C de Papus e da Aurora Dourada de Crowley.

E no entanto, apesar de na aparência não existir concordância sobre a definição do termo, continua a existir tacitamente acordo quanto ao uso da expressão R+C a propósito de um conjunto de forças, de arquétipos, de símbolos, e de discípulos que ao longo dos anos os vem manifestando.

E nisto é que reside o paradoxo: que se aceite esta disparidade de conceitos a propósito de algo que na aparência é uma só coisa. E não só que se aceite, mas que se viva e defenda essa mesma diversidade, como se nela residisse uma das vertentes da própria filosofia.

Esta questão é tanto mais interessante e estranha, quando se sabe da incapacidade humana para aceitar a diversidade. E ainda por cima aceitá-la nos outros. E pior ainda, legitimá-la.

Tudo isto nos leva a concluir duas coisas: primeiro que a R+C não é uma filosofia intelectual, mesmo que se apoie em determinados princípios esotéricos, é antes uma filosofia de vida ou um projecto; segundo, que falar de R+C só tem razão de ser desde que se entenda por esse termo o seu sentido mais vasto, ou seja o de cúpula organizativa ou de hierarquia.

De acordo com o Mestre, perde-se na origem da humanidade a própria origem da Ordem dos Cavaleiros de Aton (vulgo R+C). Oriunda das estrelas e das hierarquias que de longe velam por nós, a sua origem (embora com outras designações e atributos) extravasaria aquilo que entre nós aconteceu e que podemos ser tentados, numa abordagem imediata e relativa, a pensar. Por outro lado, e ainda segundo o Mestre, as suas origens, neste planeta, remontariam àqueles que construíram e edificaram a civilização do Alto Egipto.

Sendo isto verdade, teríamos de fazer remontar as origens da R+C aos inícios da civilização e humanização do próprio planeta, logo e por inerência, àqueles que mais tarde se vieram a constituir em organização planetária e em garantes da própria evolução: estamos falando da Grande Fraternidade Branca.

É fácil de perceber o que tais origens implicam: um compromisso com as hierarquias estelares e seu projecto para este planeta.

Já não, como é norma, um plano de duração relativa suportado pela necessidade de manifestar numa dada época esta ou aquela ideologia, mas algo demasiado vasto para que lhe possamos aperceber os contornos ou para que, mesmo vivendo integralmente em função dele, algum dia nos possamos assumir como parte sua.

Esta dimensão, demasiado vasta e complexa, é que tem tornado, a nosso ver, impossível definir a R+C como se definiram tantas outras organizações. E se é verdade que através de algumas delas foi a própria Ordem que se manifestou (será o caso dos Irmãos Templários), o estudo destes grupos em nada nos elucida ou ajuda a entender o projecto maior em que tudo isto se insere.

Talvez por esta razão, ou ainda pela própria indefinição em que os grupos ditos rosacrucianos se movem, optaram os historiadores por se agarrarem a fragmentos históricos (ou àqueles que os viveram) como forma de explicarem algo que a todos ultrapassa: o projecto R+C.

O fio da história não é linear, mesmo quando aqueles que o vivem apenas se situam no plano imediato.

É verdade que existe a história cronológica e que esta se baseia num conjunto de forças que se vão expressando por uma continuidade, mas paralelamente a esta continuidade existirão outras forças (chamemos-lhes arquétipos) que impregnando o inconsciente colectivo e individual, fazem por vezes emergir aspectos que desencadeiam, ou a repetição cíclica ou o salto no desconhecido. Estes dois movimentos, linear por um lado, e descontínuo por outro, são paralelos e a nenhum deles podemos com propriedade atribuir tudo.

A história da R+C não faz parte da Historia, mesmo que os seus discípulos façam parte dela. Movidos por forças que na maioria das vezes não entendem, as suas acções ultrapassam-nos. Inserem-se, é verdade, num projecto contínuo, mas porque ligados ao seu tempo e às contradições da sua época, mais não entendem que o pequeno fragmento que através deles emerge. E mesmo quanto a este, dificilmente o vêem na sua totalidade.

A história da R+C é (a nosso ver) a história das almas em manifestação temporal e da sua encarnação sucessiva para dar corpo à Obra.

Vindos das estrelas, dormem ainda em vida suspensa, depositados os seus invólucros carnais nessas naves luz que, pairando em orbita numa dimensão paralela ou escondidas em cavernas profundas, lhes servem de lar e de refúgio. É assim desde sempre e para sempre será a menos que esta humanidade sua filha e herdeira ultrapasse a barreira psicológica do egoísmo que faz odiar o irmão e amar o abismo. É assim há tanto tempo que já lhe perdemos a recordação e sobre essa época só temos lendas.

Sobre o antigo Egipto temos mitos, sobretudo aquele de que a civilização terá começado ali. Na verdade até pode ter começado, sobretudo se pensarmos que sob o símbolo Egipto se esconde, não a realidade geográfica que lhe associamos, mas uma espécie de terra simbólica ou mistura de diversas épocas.

O Egipto do Mestre não é nem foi nunca o Egipto de que a História fala. O Egipto do Mestre foi antes uma civilização que se estendeu por todo o planeta e que em certos lugares, escolhidos decerto pelo seu telurismo, criou focos de cultura e humanidade cruzando espécies e depositando sinais. Portugal (ou melhor, a Lusitânia) será um desses lugares.

Na bandeira da nação lusa, numa genial intuição ou antecipação do futuro, alguém colocou os sete castelos da Iniciação. É assim, desta forma estranha e às vezes absurda, que a realidade emerge e nós, ou vemos porque sabemos, ou passamos ao lado e não damos conta.

Na bandeira, toda ela símbolo e analogia (como diria Pessoa), estão os lugares reais da Obra dos Irmãos. Mas está também o próprio mundo, já não e apenas na configuração limitativa das terras e dos continentes, mas na liberdade espiritual que os suporta. Está ainda, para quem queira ver, no cruzamento das linhas e na figura da cruz, esse reino agartino enquanto lugar central para onde convergimos. E por ultimo, mas não menos importante, nos dois campos paralelos, verde e vermelho que, unidos darão lugar ao ouro filosofal da esfera armilar (ou Obra realizada) as forças básicas, casadas e unidas na realidade maior que é a própria Obra. É isto tudo e muito mais que a bandeira oculta.

Aos Lusos sucedeu Portugal. À primeira fase do projecto de espalhar a luz e definir os contornos da civilização planetária através de povos organizados em núcleos restritos, sucedeu a segunda fase de encabeçar a Europa e de lhe dar um rumo. Por isso a independência, por isso a fase das Descobertas, por isso a busca do reino do Pai João, por isso ciclicamente o emergir de dinastias que, fruto da genética celeste e terrestre, encarnaram e manifestaram o casamento alquímico do Céu com a Terra através do Rei e da Rainha.

Foi assim com Dinis e Isabel. Porquê? Para anunciar os alvores de uma nova dispensação, a mesma que estamos agora tacteando: esta ideia de haver um Quinto Império que suceda e sintetize os quatro que já houve, mas que seja maior do que estes e sobretudo que não os copie.

Sobre o Quinto Império podemos imaginar quase tudo, sobretudo se recuarmos ao simbolismo das festas do Espírito Santo que desde esta dinastia se organizam. Vejamos as ideias chave: coroação do Menino Imperador (ou seja, do Rei do Mundo); abertura das prisões e libertação dos cativos (ou seja, libertação das prisões carnais e ideológicas em que a humanidade se aprisionou e onde sofre); partilha e distribuição dos bens por todos (ou seja, dar a cada um segundo as suas necessidades e assumir que na verdade tudo pertence a todos); entronização da pomba enquanto força do Espírito Santo (ou seja, assumir que a nova era, regida pela Criança, representa um salto qualitativo e não uma mera continuidade daquilo que somos).

Portugal titubeou face à dimensão da missão que lhe era pedida, titubeou e perdeu-se: ou não?! Aqui as opiniões divergem.

Para uns sim e por isso a necessidade de expiar em Alcácer Kibir os pecados da gula, do egoísmo e da riqueza inútil. Para outros não, porque afinal Portugal fez as Descobertas, contribuiu para aproximar os povos, gerou cultura e fez-se grande, tão grande que chegou a tentar intitular-se Centro do Mundo e ao Rei de Portugal, pela mão da Igreja, houve quem o coroasse Imperador.

Era assim o Portugal imperialista de antes do terramoto e mesmo depois deste continuou sendo através desse projecto urbanístico que criou uma rua Augusta, tendo a ladeá-la uma de Ouro e outra de Prata, todas desembocando numa praça onde tutelavam os poderes simbólicos e reais das artes, dos ofícios, dos políticos e da finança.

Como estranhar o absolutismo de reis e de ministros que, assumindo-se ou supondo-se mensageiros de Deus na Terra, exorbitaram por isso os poderes que a orientação dos outros lhes concedia? Ou até, mais perto de nós mas não menos estranho, esse absolutismo de Salazar que, copiando o pior dos reis “por direito divino”, se acabou assumindo uma espécie de messias de um estado novo só na aparência.

Cópia em segunda mão desse outro messias que havia de conduzir a Alemanha (nação gémea de Portugal e outro dos castelos da R+C) para o cadafalso? Na verdade não: Salazar reinou e viveu como um monge. Preferiu às luzes da ribalta o silêncio do claustro, e também não consta que tivesse alguma vez adorado os deuses antigos, pelo contrário.

Época estranha a de Salazar de Hitler de Mussolini e de Franco, onde de repente emergiram forças contracionárias (talvez em resposta à revolução bolchevique) e onde os ditadores apareceram vestidos de sinais messiânicos, encarnando e invocando os abismos da psique.

São estes os sinais do tempo: palcos improvisados onde se celebra a entronização de forças obscuras. E no entanto, disfarçados e intocáveis, os discípulos da R+C não desistem.

Para onde vai o mundo? Vai para onde quisermos: vai para o abismo do absolutismo despótico ou para a glorificação da Criança e para a edificação do reino do Espírito Santo. Nós é que escolhemos – nós e aqueles que velam por nós.

Amarna, 2004
JC

A Comunidade II



A comunidade será sempre uma expressão vazia de sentido se não a interiorizarmos. Porque mais importante do que vive-la no exterior será assumi-la no intimo. Então podemos dizer que antes de partirmos para a vida comunitária teremos de alcançar e realizar na alma o entendimento da partilha, da dádiva e do despojamento.

Os outros são os espelhos em que nos reflectimos. Pelo que a comunidade será sempre um lugar de paz ou de guerra, consoante aquilo que tivermos dentro de nós. Ora se é permitido ao homem vulgar a instituição da guerra e do conflito como norma de vida e conduta, ao discípulo só lhe é permitido semear a paz e o amor.

Por vezes temos dificuldade em lidar com a agressividade uns dos outros. Esta dificuldade dá-nos o motivo para recusarmos a partilha e para adiarmos a adesão àquilo que será talvez a única forma de realizarmos o nosso discipulado.

A comunidade (enquanto modelo) não é apenas uma solução para os Irmãos: é também a solução possível para a maioria dos problemas que os seres humanos tem vindo a enfrentar desde que a organização da “polis” se iniciou e que optamos por viver em sociedade.

Ao longo da história humana o modelo da vida comunitária tem prevalecido e tem demonstrado o seu valor. É por isso que os grupos espirituais e religiosos o escolheram e é também graças a ele que conseguiram resistir e prosperar, mesmo nas piores condições.

Quer os Essénios em pleno deserto, quer os padres do deserto recolhidos nas cavernas do Sinai, quer as comunidades ortodoxas do monte Athos na Grécia, quer as Igrejas protestantes ou católicas em África e na América Latina, quer ainda, mais perto de nós, o movimento Templário na Terra Santa ou o movimento Franciscano nos montes de Assis.

Em todos estes grupos verificou-se o mesmo: a partilha das suas vidas permitiu-lhes resistir e crescer.

Ainda hoje, a quase totalidade das organizações religiosas ou místicas, quer existam no Ocidente ou no Oriente, optam sistematicamente por organizarem a sua existência no modelo comunitário. Não é por acaso.

Também os aldeamentos ditos ecológicos, quer se façam em redor de filosofias ou apenas na preservação dos recursos ambientais, optaram por partilharem capacidades e bens segundo o ideal comunitário.

Na verdade, é-nos impossível descobrir de que forma podem os Irmãos realizar o seu destino individual e colectivo, se não o basearmos na definição magistral do Mestre de que a comunidade é lugar em que os ricos ajudam os pobres e em que os fortes protegem os fracos.

Estando aqui, nesta definição, a verdadeira diferença que opõe e separa a sociedade comum daquela que pretendemos construir.

Há Irmãos que defendem a ideia de que é possível viver espiritualmente e em simultâneo manter os modelos sociais existentes. É possível se pertencermos à classe dos que detém o poder, os bens, e por consequência a liberdade para deles usufruir. Mas para todos os outros, sobretudo para aqueles que consomem a maior parte das suas vidas a garantir a riqueza e privilégios da classe dirigente, só é possível a escravização e a perda progressiva das suas almas.

Na verdade, o mais estranho, o mais absurdo, não é a constatação que diariamente fazemos de que as nossas vidas não nos pertencem – o mais estranho é que o sabemos mas somos incapazes de romper as cadeias que nos mantém submissos. Como se a escravização dos corpos escondesse a das almas ou prolongasse esta.

Amarna, 2004
JC

A Comunidade



A Comunidade somos todos. Não é um espaço físico situado aqui ou ali, seja no tempo ou no espaço: é uma alma que ensaia a aventura da vida.

Alguns pensam que Comunidade são esse conjunto de casas e outras estruturas que ao longo dos anos o esforço colectivo ergueu e mantém. Talvez isso seja o esqueleto, não é todavia a alma que o habita.

Se Comunidade fosse estruturas, então corríamos perigo de dissolução. Não é toda a estrutura uma organização limitada no tempo? Sobretudo limitada por aqueles que com ela se identificam e que por isso a alimentam com a sua vida?

No dizer do Mestre: Comunidade é situação em que o rico alimenta o pobre, em que o forte protege o fraco. O que nos remete para essa ideologia do Quinto Império tal qual a pregaram e praticaram Dinis e Isabel.

Reino da Criança onde uma criança assumia o dever de governar em nome dessa outra criança a que chamamos Rei do Mundo.

E partilha, sem condições de desigualdade, daquilo que sendo de cada um era também de todos: o pão, o vinho, os frutos, a liberdade de dar e receber.

Foi isto que outros inventaram antes de nós chamarmos aos nossos esforços: Comunidade! Inventaram para que nós, agora no tempo em que é possível, o vivêssemos também e multiplicássemos o exemplo para outros o fazerem um dia.

É assim que Comunidade se faz: pela multiplicação do que somos, pela partilha do que temos, pelo assumir do que trouxemos à manifestação.

Amarna, 2004
JC

Para lá da razão



A poucos meses da data indicada pelo Mestre para dar início à Comunidade dos Irmãos, confrontamo-nos com a eterna questão: seguir o Mestre, deixando tudo para trás, esquecendo responsabilidades sociais e humanas ou, ao contrário, tentar conciliar os deveres para com o Mestre com os deveres para com o mundo e as coisas do mundo?

Esta questão não é fácil nem simples. Por um lado temos o apelo da alma que se quer libertar das amarras do mundo. Por outro temos os deveres, ou aquilo que consideramos como tal, para nos recordarem que os compromissos assumidos não cessam pelo facto de voltarmos costas à cidade.

Postas as coisas deste modo, a solução parece impossível. E se-lo-á enquanto usarmos unicamente a ferramenta do raciocínio. É que pela lógica do mundo, e nós somos todos cidadãos do mundo, é absurdo trocar as facilidades, mesmo que ilusórias, daquilo que se tem, por algo que ainda não se tem nem se sabe se existirá algum dia.

A lógica do mundo é terrível, a prová-lo está a nossa indecisão. Pelo que nesta questão não podemos seguir unicamente pela via racional, temos de incluir aqui o princípio da fé. E a fé manda que tenhamos confiança no nosso destino, enquanto discípulos, que tenhamos confiança no Mestre, enquanto seus filhos, e que tenhamos confiança uns nos outros, pois que construir um projecto comunitário só é possível quando todos confiarem em todos e se amarem fraternalmente.

O princípio da fé, que não é de ordem racional, ultrapassa a dificuldade e coloca a questão num nível distinto. E a questão é: somos suficientemente corajosos para encarnar nesta época a missão de manter a chama da consciência acesa, ou não? Somos suficientemente corajosos para assumirmos a missão de levar a mensagem a todos aqueles que a quiserem ouvir, ou não? Somos suficientemente corajosos para acreditarmos que as forças que nos trouxeram ao mundo, hão-de continuar a velar por nós enquanto a nossa missão não estiver concluída, ou não? Tudo se passa neste nível.

Ao homem em cada um de nós, talvez seja legitimo expressar os receios quanto ao futuro: o que há de comer, o que há-de vestir, onde se há-de abrigar. Mas aquilo que é legitimo ao homem, por via do seu medo, talvez não seja legitimo ao discípulo, talvez seja uma traição ao seu Mestre.

Se o Mestre acreditou suficientemente nestes discípulos, porque havemos nós de descrer da sua fé? Ou será a razão do discípulo maior do que a consciência do Mestre? Se assim é estamos todos perdendo o nosso tempo e mais nos valia não estarmos aqui. Ao contrário, se houve alguma humildade quando batemos timidamente à porta do templo, então temos agora de dar o passo seguinte e contrapor a todos os obstáculos que o mundo entender inventar para nos deter, uma confiança total e absoluta naquele que a todos nos assumiu.

O primeiro dever do discípulo é seguir o Mestre. O segundo é confiar nas suas indicações. O terceiro é amar aqueles que o Mestre entendeu colocar à sua guarda. De onde deriva que nenhum dos irmãos estará isento de responsabilidades se algum se perder. Ou seja: somos responsáveis não apenas por nós, mas por todos os outros. E esta questão torna-se especialmente importante quando, daqui a alguns meses, uns vierem, porque tem condições para vir, e outros ficarem para trás, porque não as tem.

Pelo que a juntar a todas as questões aparentemente insolúveis, há ainda mais esta: somos uma unidade onde todas as partes são essenciais. Deste modo, querer construir uma comunidade, que na verdade é uma unidade de consciências, deixando de lado alguns, é não apenas um absurdo como uma impossibilidade. Se tentarmos ir por esse caminho, o que estaremos construindo não é mais que um ser inacabado.

Construiremos a comunidade quando nos juntarmos em redor da fé no Mestre, da obediência aos seus princípios, e no amor de uns pelos outros. Até lá projectaremos na parede baça do futuro as nossas intenções, que para uns serão mais claras e para outros mais obscuras, mas nada de fundamental estaremos construindo. Porque a verdadeira construção começa no espírito e termina na carne, começa na fé e termina na razão, começa no amor e termina na confiança. E sem fé e sem amor, a razão é apenas um obstáculo intransponível e o amor é apenas um egoísmo, mesmo que seja um egoísmo de muitos.

Por entendermos que esta questão continua em aberto nas vidas de todos os Irmãos e que para alguns é já uma ferida, em redor da qual sofrem e fazem sofrer, pareceu-nos oportuno reflectir. Não na tentativa ilusória de escamotear as dificuldades, que até são de todos, mas na ideia de que juntando a nossa reflexão à vossa, alguma luz pudesse penetrar no nosso nevoeiro.

Queira o Mestre esclarecer-nos a todos para, no silêncio da nossa alma, alcançarmos um patamar de onde possamos ver, não apenas as dificuldades, mas também alguma luz.

15 Dezembro 2000
JC

Magia




Viver em magia é viver em harmonia. É ser capaz de traçar o seu destino através do destino de todas as coisas, e é tornar-se numa unidade com todas as outras coisas – pois magia é unidade.

Para chegar a este planalto de onde tudo se descobre uno e múltiplo, é preciso ter esgotado uma certa forma de aparência que as coisas têm ou parecem ter. É preciso ter penetrado no seu âmago e ter visto nelas o nódulo essencial que as alimenta e que lhes confere realidade e vida.

Para isso é preciso sensibilidade. Não a sensibilidade do médium, que é de ordem inconsciente, mas a sensibilidade do mago, que é de ordem consciente. Como o poeta que, controlando-se controla a sua poesia. Ou o músico que, tendo ultrapassado a escala musical, alcançou uma nova escala de dimensão cósmica.

A sensibilidade do mago é coisa rara e única. Tão rara e única que nem se ensina (não há escolas de magos), nem se transmite (pela mesma razão). E quando se ensina, ou aparentemente se ensina, ensina-se apenas àqueles que já nasceram magos. Pois aqui, como na R+C, nasce-se para isto como lá se nasce para servir os outros.

Magia é integralidade – integralidade consciente e vivida. Onde tudo participa do mistério fundamental que é viver cada segundo em consciência acordada e plena. Pelo que cada coisa, ou ser, possui identidade própria e colectiva, de ordem magica e humana, transcendente e imanente – ou não fosse a sua essência múltipla.

Viver magicamente será então um dos degraus que lucidamente sobe aquele que quer alcançar a escala do uno e imutável senhor. Ou o último desses degraus pois que, galgado este, se penetra (assim dizem as crónicas antigas) num plano de realidade distinto deste.

Lisboa, 31 Outubro 1990
JC

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Ocultismo, que futuro?



O ocultismo do século 19 teve um grande defeito: tentou organizar o mundo e esclarecer todas as dúvidas. Para compreender esta necessidade é preciso perceber a mentalidade dessa época: racional, fechada sobre si, convencida de que tinha alcançado o topo do saber.

É famosa a história (verídica) do encerramento do registo de patentes: é que já se tinha inventado tudo. Mais tarde percebeu-se que não e que a maquina a vapor era afinal o começo de um caminho sem retorno. É também conhecida a ideia de que nenhum corpo mais pesado do que o ar poderia voar. Esquecendo-se, quem o disse, de que os pássaros voam. Agora todos voamos e já ninguém pensa nisso.

A uma mentalidade tão fechada tinha de corresponder um grande orgulho e simultaneamente um grande medo. Como consequência do orgulho veio a guerra, como consequência do medo veio a desconfiança dos outros e mais tarde o início dos grandes movimentos de reforma social.

No plano do ocultismo veio a ideia de tapar os buracos deixados pela gnose e pelos fragmentos dispersos do Rosacrucianismo, da Alquimia, do Templarismo, da Maçonaria. A primeira ferramenta de que o ocultismo lançou mão foi a experimentação, nisto se assumindo cientifica. O que deu origem ao fenómeno do Espiritismo e da Parapsicologia.

Com o Espiritismo veio a racionalização dos mundos subtis, das relações entre almas encarnadas e desencarnadas, a teoria da evolução, a classificação dos mundos e dos corpos e por consequência das leis que tudo fazia existir. Foi uma época de certezas e deixou-nos um legado que ainda agora, já não racionais nem mecânicos, continuamos seguindo e mantendo.

Antes do século 19 havia ocultismo mas era diferente: havia alquimia para os práticos da pedra filosofal e teórica para os adeptos da transformação espiritual; havia magia, sobretudo negra ou vermelha; havia cabala e através desta o estudo dos livros bíblicos; havia Rosacrucianismo e através deste uma mistura de tradição cristã com paganismo; havia gnose e por isso o estudo dos clássicos gregos.

Havia tudo mas nada organizado no estilo enciclopédia a que os grupos do século 19 nos habituaram. E sobretudo não havia resposta definitiva para os grandes mistérios, mesmo que cada tradição ou grupo afirmasse a sua parte de verdade e tentasse a seu modo responder.

Depois aconteceu Blavatsky e essa enxurrada de teorias estranhas ao Ocidente. E como consequência de Blavatsky e do Hinduísmo, aconteceu a organização do ocultismo ocidental e uma espécie de guerra de bastidores para manter coeso e inalterável o propósito (ou aquilo que se acreditava ser o propósito) das tradições ditas ocidentais.

Ninguém estava preparado para Blavatsky e a resposta foi confusa e incoerente. O ocultismo ocidental tinha sido druida, grego, romano, cristão também. Mas era feito de fragmentos e não tinha nem a complexidade nem a dimensão nem a resposta que a Teosofia tinha.

De repente acordados, postas em causa certezas profundas, organizaram-se os defensores da tradição do ocidente como se houvesse na verdade algo a defender. Ressurgiu a R+C, a Maçonaria (agora mais especulativa ou filosófica), o Martinismo, alguns tipos de Templarismo, a Alquimia, a Cabala. E autores, sobretudo franceses (Levi, Papus, Guaita, Peladan), mas também ingleses (Yeats, Crowley, Lytton) e alemães (estes mais místicos e nacionalistas).

O esforço resultou, e aquilo que começou de forma incoerente acabou por criar raízes e por assumir contornos de movimento filosófico permanente. Assim desembocou em homens como Heindel, Stainer, Hesse, Lewis. E através destes chegou aos nossos dias.

Agora estamos vivendo um paradoxo e vamos ter de fazer opções: ou esse ocultismo paternalista a que nos habituaram ou o desbravar de outras e diversas dimensões. Apanhados na curva da história, com um pé no desconhecido e outro em aparentes certezas, ainda não sabemos o que fazer. Os melhores de entre nós hesitam: conscientes de que a verdade é, como disse magistralmente Krishnamurti, “um país sem caminhos”, tem dificuldade em hipotecar o futuro aos seus e nossos receios.

Paralelamente proliferam as ideias pessoais e misturam-se as teorias que vão dos ovnis à espiritualidade, da busca do Graal à magia, dos cultos afro-americanos à esperança messiânica num salvador que nos redima. Misturam-se as ideias e assiste-se ao aparecimento de grupos cuja desorientação espelha a da própria época em que vivemos.

Época perigosa pela diversidade da oferta de ideologias, mas sobretudo pela forma simplista com que as queremos viver. E somos tentados, mesmo os melhores de entre nós, a viver à margem da consciência e a adoptar poses que em nada nos ajudam a reencontrar o fio da meada que algures no século 19 se perdeu.

Amarna, Verão de 2003
JC

Os mundos misturam-se



A percepção mais não faz quase sempre do que confundir-nos. E se é verdade que sem ela e os sentidos físicos (e psíquicos) a que se encontra ligada, pouco poderíamos entender do mundo e menos ainda agir sobre ele e sobre a vida, também é verdade que a nossa acção está eivada de distorção e de irrealidade precisamente porque a percepção vem distorcida.

O mundo é diverso na forma e mais ainda nas energias subtis que o configuram. Mas porque nada disto entendemos e, ao contrário, tudo temos feito no sentido de o restringir e limitar a um dado conceito, esta visão rejeitamo-la e em lugar de nos situarmos no ponto de convergência das forças (mas onde o processo sendo uno é caótico), optamos pela periferia e por esses lugares (ou dimensões) onde a energia e o tempo se condensaram produzindo uma matéria quase inerte e um tipo de consciência quase larvar.

Padronizamos a realidade para assim termos forma de a manipular. Esta forma estereotipada de viver e perceber, tem criado milhões de mundos fechados e tem conduzido ao choque permanente de povos, de culturas, e de conceitos. Sendo verdade que apesar de partilharmos o mundo e seus recursos, cada um o vive e faz desses recursos o que a sua escala de valores, toda ela intimista, lhe diz ser a verdade.

A verdade, no entanto, não se deixa capturar. E apesar de cada povo estar convencido da veracidade que lhe assiste, o que legitima a imposição a outros, na realidade ninguém se pode outorgar direitos sobre terceiros, muito menos quando estes se regem por padrões diferentes.

Tudo se passa como se cada povo tivesse adoptado um conjunto de referências (ou quadros mentais) de raiz psicológica profunda, a partir das quais organizasse o seu imaginário, a sua escala de valores, o seu destino.

Hoje, misturadas que estão as formas de ver o mundo (sobretudo a partir da expansão cultural do Ocidente), sobressaem menos as dicotomias e somos até levados à ideia de que as distinções se esbateram ou anularam. No entanto, basta penetrar no íntimo das culturas orientais, para percebermos que a visão superficial de uma aparente unidade não resiste a um estudo mais profundo.

Esta diversidade não se explica apenas pelas condições naturais das regiões em que os diversos povos têm vivido. Mais provável é haver, na origem do fenómeno, uma origem racial ou cultural diferente. Ou seja: ter sido a pátria original de cada povo, provavelmente situada em constelações distintas, a fazer a diferença.

Assume-se desde há muito que o povoamento do planeta (como de todos os outros) se fez por levas sucessivas de emigrantes vindos de diversas partes do cosmos. Esta origem escalonada no tempo explica duas coisas: a origem das raças e a incapacidade de entendimento e miscigenação.

Considerou o ocultismo atribuir a cada raça uma determinada época onde a sua cultura teria prevalecido. Esta afirmação devemo-la ler numa dimensão mais vasta: a sua prevalência deveu-se, não apenas a factores espirituais (únicos que o ocultismo valorizou) mas também e sobretudo ao facto de cada povo, chegado à Terra, deter ainda a sua cultura e estar na posse da sua tecnologia. Esta condição, que outros vindos anteriormente provavelmente já não possuiriam, dava a cada novo grupo o predomínio e a capacidade de se tornar numa espécie de centro cultural e espiritual ordenador da sua época.

Podendo-se desta forma, e conhecendo-se a época em que cada raça prevaleceu, estabelecer com alguma exactidão o momento da sua chegada e a sua localização original sobre o planeta.

Amarna, Verão de 2003
JC

Partilha ou posse



De partilhar muitos tem medo! A ideia é revolucionária e contraria, na aparência, hábitos antigos de uso exclusivo. Educados desde o berço para possuir, entendemos com dificuldade esta ideia de não termos nada para termos tudo. E também ainda não percebemos que, como escreveu Agostinho: “não somos nós que temos as coisas, mas elas que nos tem a nós”. Na verdade basta olhar em volta: é um esforço sem fim para comprar e conservar o que se comprou.

Pensou-se durante muito tempo que a industrialização poderia reduzir o trabalho humano ou até acabar com ele. Poder poderia, mas era preciso que se quisesse. É que não basta por as máquinas a trabalhar para o homem: é preciso não por o homem a trabalhar para outros homens, é preciso cria-lo livre.

Tal como estamos, em pleno consumismo, somos educados para acreditar que é preciso produzir bens e fazê-lo até aos 60 anos, pelo menos. Ou seja, quando vamos para a reforma estamos velhos, doentes, e pouco ou nada interessados no lazer. Isto para os que produzem, autênticos escravos do sistema. Há depois os que não produzem mas vivem do esforço alheio: são poucos mas são eles que mandam, ou nós acreditamos que sim.

Antigamente era o feudalismo. Depois, porque a terra perdeu valor face à cidade e aos confortos que lá havia, criou-se a burguesia e desta chegou-se ao capitalismo. Agora estamos chegando à globalização que será uma forma mais anónima de gerir o poder sem dar a cara – uma espécie de absolutismo autocrático e despótico.

Por esse mundo fora manifestam-se as minorias: contra a guerra, contra a globalização da economia, contra os direitos absurdos de uns sobre os outros. E assiste-se à desumanização progressiva do mundo e à morte de milhões que tiveram o azar de nascer em África ou no Médio Oriente. Sabemos tudo isto, mas porque é de todos os dias, vivemos alheados e já nem pensamos.

Enquanto só lhes tocar a eles, compreendemos tudo. E pensamos, cada um para si próprio, que estas coisas só acontecem em África ou na Ásia, nunca na Europa, nunca aqui. Na verdade acontecem onde tem de acontecer, como na Argentina – e de repente é a bancarrota e o sistema faliu.

Os analistas referem, desde os anos 80, uma grave crise de estruturas a nível mundial. Talvez por isso cada grupo de países, organizados em blocos continentais, se juntou para fazer face à crise económica. É a razão do grupo europeu, ou asiático, ou americano, ou agora, e mais recentemente, africano.

Respostas à crise? Não é bem assim: tentativas de lhe passar ao lado, de a ignorar. Porque no fundo ninguém quer prescindir de coisa alguma, sobretudo quando toca a consumir. Todos querem a mesma solução: consumir o que é dos outros e não lhes dar nada em troca. É por isso que os Americanos agora fazem guerra onde dá jeito, e dá sempre jeito fazê-la onde está o petróleo, o gás natural, as riquezas.

No Fórum Mundial realizado no Brasil, os movimentos ecológicos, os grupos pela paz, e as organizações não governamentais, tem vindo a falar de outro tipo de soluções: falam sobretudo em partilha e em distribuição de riqueza. Mas a voz do Brasil (país onde 10% detém o poder económico e as assimetrias são gigantescas: veja-se o caso dos “sem terra”) ainda não teve eco no mundo. É que tardamos em perceber que a solução Americana, ou Europeia, tem os seus dias contados, e que fazer a guerra aos outros só leva a uma revolta surda que um dia há-de explodir.

Pela nossa parte acreditamos na libertação do homem e na ideia de que estamos vivendo a época em que é possível realizar a passagem entre a sociedade exploradora por troca com aquela que busque e implemente a criatividade e o lazer. E sonhamos que experiências como a das Comunidades alternativas possam vir a ser os balões de ensaio dessa nova sociedade.

Gostaríamos por isso de ver imperar o espírito da partilha em lugar da ideia da renda. É que temos alguma dificuldade em perceber que se possa partilhar a vida e depois não se consiga partilhar aquilo que tem menos valor nessa vida: os bens. Mas compreendemos que as ideias novas levam o seu tempo e que não se mudam mentalidades de repente. Preferimos pensar antes que a partilha da vida nos levará inevitavelmente a confiar uns nos outros, a juntar esforços, a cerrar fileiras, e um dia a partilhar os tais bens que afinal nem sequer são nossos, mas de todos os que vivem neste planeta.

Então poderemos ir pelo mundo e dizer a todos que encontrarmos, que existem lugares onde a vida não passa pela competição nem obriga à escravização. Pelo contrario, onde o que existe é esse sonho tornado verdade de haver comunidades onde a vida é gratuita.

E poderemos ainda falar do reino do quinto império e da idade do Espírito Santo, porque afinal a estamos vivendo. E poderemos convidar outros a partilhar connosco. E isto sim, é ser Irmão da Nova Era e é assumir esse sonho dos Mestres: de Comunidade ser lugar de partilha e de protecção do pobre pelo rico, do fraco pelo forte.

É isto que penso quando penso em Comunidades. Não penso em bens que afinal são a continuação do que temos por esse mundo fora, o tal sistema que faliu. Mas se tivermos de começar pelos bens para um dia chegar à partilha, pois comecemos.

Amarna, Verão de 2003
JC

Discipulado



O primeiro dever do discípulo é estar disponível para o seu Mestre. O segundo, que deriva deste, é estar disponível para a Obra. O terceiro, que será a consequência de ambos, é estar disponível para os seus Irmãos e pressupostamente para a Humanidade.

Alguns discípulos estão disponíveis para o Mestre, mas totalmente indisponíveis para a Obra, muito mais ainda para os Irmãos ou a Humanidade. Este tipo de discipulado baseia-se numa adesão emocional àquilo que idealmente se considera ser a figura do Mestre: paternalista, protector, continuação da figura do “pai” tal qual a sociedade actual nos habituou. Escusado dizer que este tipo de discipulado vale pouco ou nada.

O discipulado é uma forma de aderirmos conscientemente à nossa auto-transformação e de participarmos nela. Podemos dizer que desde que nascemos fazemos auto-transformação: o que é verdade. Mas fazemo-la contra a nossa vontade, fazemo-la porque as leis do destino agem sobre a matéria e criam-lhe condições que esta não pode contornar. Então a única forma de sobreviver e manter a ideia do “eu pessoal” é aderir. Mas esta aderência é feita sem vontade nem disponibilidade. É verdade que mudamos na aparência, mas porque não aderimos à mudança, porque não a desencadeamos nem a desejamos, na verdade tudo fica na mesma.

No discipulado nada pode acontecer “por acaso” tudo tem de acontecer porque o queremos. Esta adesão faz a diferença e determina a transformação final. É por isso absurdo querer aderir a um mestre feito por encomenda para cada sensibilidade ou criado unicamente para suprir as insuficiências de cada um. E mesmo que o discípulo cultive a ideia de satisfação com este tipo de mestre, mais tarde ou mais cedo tudo ruirá porque na verdade o Mestre só pode agir contra as ideias feitas, contra os aprisionamentos, contra as redomas.

Estar disponível para o Mestre não significa estar disponível para a nossa projecção do que ele é, significa antes assumir os deveres espirituais acima daqueles que a sociedade criou e que nós alimentamos.

Há discípulos que tem dificuldade em perceber o que é servir o Mestre: a esses basta-lhes servir os Irmãos, já que servindo aqueles que o Mestre tomou para si estamos servindo o próprio Mestre.

Há outros que não entendem o que é a Obra e por isso fantasiam. A Obra é tudo que conduz do esboço à estátua acabada, do destino pressentido ao destino assumido, do desejo à sua consumação. E é também todo o acto feito em prol da humanidade.
Servir a Obra é servir o projecto divino em qualquer uma das suas vertentes: humanas, sociais, políticas, cientificas, artísticas, místicas. Mas para servir é preciso estar disponível, e para estar disponível é preciso estar livre, e para estar livre é preciso colocar o interesse colectivo acima do interesse pessoal, a vida dos outros acima da própria.

Há discípulos que aparentemente fazem tudo isto e no entanto não estão servindo a Obra: estão-se servindo dela para auto-envaidecimento. A diferença entre o enaltecimento do ego e o seu despojamento, é subtil. Por isso a maioria dos discípulos falha quando tenta servir o Mestre e realizar a Obra: projectando-se no que fazem, colocando os seus ideais acima do bem colectivo, apropriam-se desse colectivo e mascaram-se com ele, perdendo toda a perspectiva.

Realidade e fantasia misturam-se na percepção. É por isso muito difícil perceber o que é projecção pessoal ou interesse colectivo. Virtualmente nenhum discípulo estará isento de responsabilidades nesta matéria e o mais provável é que em toda a acção em prol dos outros exista uma parte egocêntrica.

No entanto, se é verdade que o ego está presente mesmo na maior dadiva, ele tem de ser permanentemente desmascarado por aquele que escolheu servir a Obra. E é aqui que o discipulado, com todas as suas regras e sacrifícios tem razão de ser.

Poucos Irmãos terão o habito de fazer o exercício da retrospecção nocturna: e no entanto ele é fundamental para desmascarar o ego. Sem auto-recordação, sem análise do que fazemos, tudo se transforma numa vertigem e num acto cego. Também poucos Irmãos estarão servindo através da entrega das suas vidas a algo ou alguém que lhes seja indiferente: já que servir aqueles que amamos nada acrescenta ao que já somos.

Servir não é buscar a auto-satisfação: é contrariá-la. Servir aqueles de quem gostamos não implica sacrifício e portanto nada acrescenta ao que já somos. Se só servirmos a família, os amigos, os conhecidos – então falhamos redondamente. Quem serve não escolhe: entrega-se. Escolher a quem servimos é violar o princípio do próprio serviço e é transformá-lo numa coisa egoísta. É por isso que existindo milhões de discípulos só existiram meia dúzia de almas santas.

Na vida do discípulo cada Mestre coloca os tropeços e as dificuldades que mais rapidamente o farão ganhar as asas da consciência e da liberdade. É por isso que todos estamos sofrendo de algum modo. Doença, falta de dinheiro, falta de amor, aprisionamento: não importa – é sempre o mesmo. Prova e auto-libertação. Mas só se aceitarmos e compreendermos.

De muitas maneiras somos testados nas nossas fragilidades e pouco a pouco erguidos até níveis que não supúnhamos possíveis: em tudo isto a Obra cresce. Mas é sempre contra nós que ela cresce. Não é servindo egoísmos, ou posses, ou aprisionamentos: é destruindo-os.

Estamos todos subindo uma montanha muito íngreme. Necessariamente é preciso ir libertando pesos e amarras, ou em lugar de atingir o cume ficaremos pela encosta. Nesta matéria, como em tudo que é importante na vida, é preciso escolher.

Amarna, Verão de 2003
JC

Cidadania planetária



Defendemos o uso colectivo do planeta, seja nas suas infra estruturas seja na utilização dos bens que todos os dias juntamos aos que já existem. E pensamos ainda que é o uso exclusivo e o direito de propriedade individual que estão na origem da maioria dos problemas sociais e humanos que afligem a Humanidade.

Sonhamos, por isso, com uma época em que o homem assuma a liberdade como o maior dos seus bens – assuma-a e partilhe-a.

E visionando o tempo que nos aguarda, vemos que a Terra se transformou num imenso jardim, onde pequenas comunidades se organizaram, não por razões comerciais ou industriais, mas em função das tendências íntimas e da expressão humana que a elas se liga.

A liberdade religiosa é total. Cada ser procura e expressa livremente a sua sensibilidade, seja qual for a forma como entenda e se relacione com o todo universal. Em consequência, os credos religiosos perderam terreno face à relação livremente criada entre cada ser e o cosmos humano e sideral.

Adivinha-se o aparecimento, agora ainda em esboço, de uma forma mística de inter-relação entre o homem e tudo o mais que o rodeia. A acontecer, prevê-se que este passo corresponda a uma mutação de consciência global que antecipe a adesão ao todo universal.

As filosofias esotéricas extinguiram-se enquanto partículas de um saber mais profundo. Este, por sua vez, faz agora parte da busca de todo o ser humano e está disponível em associação com o saber comum. Criou-se, deste modo, a tão esperada síntese entre ciências espirituais e materiais.

As diversas tradições espirituais fundiram-se e fazem agora parte da cultura humana. Em virtude disso, terminaram as lutas fratricidas entre seres humanos e atingiu-se a concepção de uma busca da verdade e não da ideia da sua posse como um bem acabado.

A concepção divina generalizou-se e expandiu-se, formando a base cultural da nova humanidade. O homem entendeu e assumiu realizar-se realizando o outro homem e isto conduziu ao aparecimento de uma consciência unificada. Esta consciência antecipa a possibilidade do aparecimento de uma consciência cósmica.

A indústria existe, mas em bolsas separadas dos aglomerados humanos, e em todo o caso é industria que já não polui. Para a manter apenas uns poucos, e de longe em longe, já que o objectivo da indústria é suprir as necessidades de consumo e não concorrerem umas contra as outras, como hoje é uso.

A humanidade organizada ou, em aglomerados pequenos ou, muitos em peregrinação constante, já que a troca de informação e experiência é a base de toda a evolução humana. Circular entre comunidades, realizar em cada uma delas uma parte do que somos, torna-se assim uma mais valia quer para o viajante quer para aqueles que o acolhem.

Comunicação através dos meios globais que hoje já esboçados estão, sendo o futuro apenas a disponibilização do sistema para todos utilizarem e não como agora, só para os que tem os meios financeiros. E daí um enriquecimento global, já previsível hoje, mas impossível de alcançar pelas restrições orçamentais dos países pobres.

E com a globalização da comunicação entre todos, também a expansão vertiginosa do conhecimento e seu uso. Assim se passando rapidamente da mentalidade fechada e limitada aos usos de cada povo, à ideia, muito mais correcta e verdadeira, dos interesses globais de todos.

Planeamento, na base, das quantidades máximas possíveis de gente que pode habitar, quer o planeta, quer cada região. Já que o excesso de população e sobretudo a sua má distribuição, foi e é uma das causas de guerra, fome, doença e infelicidade.

Saneamento das doenças, quer pela utilização da genética, quer pela educação das populações, já que saúde sem educação não é possível. Também controle alimentar, usando os produtos que a natureza disponibiliza e não aqueles que a industrialização forçada criou. Tudo isso no sentido de inserir o homem no seu meio natural e por consequência fazê-lo participar do conjunto.

Famílias, não forçadas pela necessidade de sobreviver a qualquer custo, ou pela ideia de acumular riquezas e privilégios, mas em virtude do interesse e gosto daqueles que assumem a necessidade de partilhar o que são. E por isso estáveis. Mas também, e simultaneamente, relações esporádicas entre pessoas que, devido à sua natureza e interesses, fazem das viagens um modo de vida.

Crianças são sempre bem vindas, já que com elas se reaprende o sonho e a ideia de melhorar tudo. Mas porque assumidas pelo conjunto e por ele educadas, crescem em liberdade e com o sentido global da vida, e isto torna-as cidadãs do mundo e portanto conscientes e positivas.

Os bens, porque excedentários num mundo que só consome o essencial, estão disponíveis para todos. E tal como hoje as bibliotecas disponibilizam cultura, no futuro os armazéns disponibilizarão objectos, alimentos, medicamentos, e tudo o mais que seja essencial ao homem.

A habitação é um direito de todos e não um uso exclusivo de alguns. Pelo que as habitações existentes no planeta são usadas de acordo com a necessidade e não de acordo com a posse. Assim, mesmo para aqueles que circulam de comunidade em comunidade, existe sempre a possibilidade de pernoitar onde encontrarem casa ou abrigo.

Também nas comunidades o podem fazer, seja nas habitações disponíveis, seja através da construção de outro espaço a eles destinado. Nestas ocasiões junta-se a comunidade inteira para ajudar a construir a nova habitação.

Porque tudo é bem comum, cessou a ideia de lutar pelo uso particular ou de ferir outros para o conservar. Ao contrario, gerou-se a ideia de que não havendo posse alguma há liberdade para viver o momento que passa. E isto traduziu-se em criatividade, em comunicação, em cultura. E em bem estar.

As guerras, geradas para defender territórios exclusivos ou direitos tornados obsoletos, deixaram de existir ou de ser pensadas como solução.

As forças de segurança, criadas para castigar e manter o poder político, extinguiram-se pela ausência de conflitos ou de interesses particulares.

As prisões já não aprisionam, pois que os seres crescem sem dor e portanto sem necessidade de ferir outros ou deles se vingarem.

Tudo que o homem criou para se defender do seu semelhante jaz agora no museu das coisas inúteis. E se alguns ainda estudam essas questões é para poderem ensinar às crianças o horror do homem que não amava o outro homem.

O comércio extinguiu-se, já que a produção chega directamente a quem a usa. E tendo-se extinguido, o custo dos bens, antes exorbitante e inflacionado pela ideia do lucro pessoal, tornou-se acessível para quem os utiliza. Saiu-se assim de uma bancarrota com data fixa e entrou-se definitivamente na ideia de uma sociedade responsável e partilhada.

O poder político extinguiu-se dado não haver necessidade de mandar nos homens nem de os convencer a serem distintos dos outros homens.

A administração existe ainda, mas sem defender ideologias particulares ou interesses exclusivos. Existe de forma ordeira e global. A sua constituição obedece a princípios considerados sagrados: liberdade, fraternidade, igualdade.

Os cargos administrativos são atribuídos rotativamente e todas as comunidades podem estar representadas. Os cidadãos também podem participar se o entenderem. O objectivo é a troca permanente de informação e o gerir das situações de acordo com as necessidades de todos.

JC

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Dharma, Karma, Consequência



Na medida em que não somos vidas encerradas mas ao contrário vasos comunicantes, toda a troca e contacto com os outros se cifra pela aprendizagem e aprofundamento do que intrinsecamente contemos: a sabedoria. Será esta, no fundo, a grande vantagem do ensino colectivo, visto dar a cada um a possibilidade de, por troca e intercâmbio com os outros, cada um se enriquecer de outras perspectivas que não apenas a sua.

Para isso será essencial duas coisas: abertura aos outros e pensamento reflexivo. A primeira por permitir que a experiência alheia se some à nossa, o segundo porque, sem ele, nenhuma troca ou evolução consciente é possível.

Presentes estes dois sinais, tudo se torna acessível àquele que busca o conhecimento; inexistentes, tudo se torna impossível para ele. Pelo que a grande batalha consista, no fundo e sobretudo, em se criar na nossa sensibilidade a maior área disponível, o menor número de barreiras, a compreensão dos outros e das diferenças que tal encerra.

Dharma é a lei: mas o que é a lei em si? Não apenas a regra de conduta a ter em conta, mas tudo o que a ela conduz e tudo quanto dela deriva. No fundo, Dharma é a totalidade das coisas existentes e os próprios princípios que presidiram à sua manifestação – Dharma é Deus.

E contendo Deus tudo, tudo está contido em Dharma. O que implica no paradoxo: pois se tudo está na lei como explicar que certos seres a possam transgredir e por isso sofrer? O que nos obriga a ultrapassar lei e punição (ou as ideias que delas temos), para vermos Dharma como aquilo que se transcende a si próprio.

Karma é o afastamento da lei: mas podemos de facto afastar-nos dela? Podemos afastar-nos de Deus? Podemos pensá-lo mas não podemos fazê-lo. Podemos cair na ilusão da separatividade, mas não podemos separar-nos uns dos outros, mesmo que o quiséssemos fazer. O grande problema de Karma reside na ilusão daquele que crê estar sob ela. No fundo, o problema de Karma é o problema do homem que se analisa e considera culpado – condenando-se.

Karma é inconsciência transformada em pena, em condenação. É auto-condenação, é auto-punição. Karma é coisa humana, é sensação de ter pecado, é sensação de estar distante de Deus e ignorar como tornar a Ele. Karma é expulsão do paraíso e é remorso.

Karma não é real: ou só é real para o homem. os deuses ignoram o Karma e os animais e tudo quanto é natural, também. Para Karma ser real teria de Dharma ser duas coisas distintas: lei e punição. Teria de Deus ser duplo: luz e trevas. Ora Deus não é duplo, Dharma não é duplo, Karma não é o oposto da lei – é a lei mais o sentimento de culpa daquele que o sente.

Consequência é como Dharma: é tudo e é natural. Tudo é consequência de Deus e Deus, por analogia, torna-se consequência de tudo. Deus é serpente que morde a própria cauda, é circulo encerrado sobre si próprio, é esfera no centro da qual tudo é quanto É.

Consequência não é algo separado e distinto, mas o motor de todas as coisas e as próprias coisas em si. Consequência é Deus que cria a vida; e vida que cria os seres; e seres que criam mundos; e mundos que manifestam arquétipos; e arquétipos que plasmam coisas; e coisas que são tudo; e tudo que é Deus visível e material.

Consequência é Dharma transformada em motor, é Dharma manifestada em todas as coisas, em todos os seres, em todos os acontecimentos. E é Karma para aquele que, condenando-se, age num contínuo de consequências.

Dharma, Karma e Consequência são uma só coisa vista de três maneiras diferentes: vontade, amor, e existência. São três coisas para aquele que as quer ver no plano da manifestação, são uma só coisa, ou principio, para aquele que está em sintonia com o divino.

No mundo das causas são uma só coisa: no mundo dos efeitos serão três coisas, ou aspectos da primeira e única. Em Deus são a unidade, nos mundos aparentes de Deus serão a multiplicidade.

Aquele que quer saber tem de ultrapassar o véu. Aquele que quer Ser tem de ser uno com tudo, tem de ser uno com Deus. Aquele que procura o conhecimento tem de aprender a separar o trigo do joio, a unidade da multiplicidade, a verdade da sua aparência, Deus e a sua sombra.

A sombra não é real, mas o resultado da matéria interposta entre a fonte de luz (Deus) e os corpos que ela banha, fazem-nos crer que sim. Para aquele que vive na ilusão a sombra é real, a multiplicidade das formas e dos conceitos também, a aparência do mundo e dos reflexos que nos cegam ou fascinam, não são discutíveis. Mas para aquele que sabe (porque feito de fé e consciência) só há uma verdade e esta é a unidade da parte no conjunto, ou é Deus reflectido em tudo.

Setúbal, 11 Abril 1989
JC

Fieis ao Mestre e fieis ao mundo



É difícil o caminho daquele que quer chegar ao Mestre mantendo-se fiel ao mundo. É difícil porque os compromissos mundanos permanentemente destroem a sua consciência e o seduzem com promessas de felicidade e de bem-estar. E o discípulo, sensível como todos os homens, porque ainda não deixou de o ser, submerge nesse caos de sensações, por vezes agradáveis por vezes não tanto.

A luta pela sobrevivência económica afasta-o de outras opções. E porque é preciso manter a aparência de uma vida social, já que os outros o exigem, o discípulo cede à tentação de conciliar a cedência ao mundo com a obediência ao Mestre. Cede e virtualmente perde-se sem chegar ao fim.

Para viver no mundo e não lhe ceder no que é essencial, a preservação da alma, seria preciso estar livre, seria preciso estar de passagem. Esta consciência, que alguns seres parecem ter atingido, é rara mas possível. Buda teve-a, Cristo também. E desde então, muitos outros a tiveram: os santos, por exemplo. Tiveram-na porque para os santos o mais importante era servirem de canais entre o plano divino e o plano humano, era serem mediadores e através das suas vidas poderem demonstrar ao homem comum que havia outras possibilidades, outra forma, mais pura e mais livre, de viverem no mundo.

A maioria de nós pensa que viver no mundo é obedecer ao mundo, é obedecer àqueles que detêm a autoridade e que definem os padrões do pensamento político, social e económico. Na verdade não é assim. Se fosse assim não haveria mudança, porque aquilo que os patrões do mundo querem é que nada seja mudado. Toda a mudança é uma alteração da normalidade e toda a alteração da normalidade pode conduzir à perda do controle que exercem sobre as populações. Por isso eles são contrários a todos aqueles que tem visões diferentes do mundo, quer seja no campo da arte, da ciência ou da política. Mas o mundo é um ser vivo e como tal muda por acção de todos aqueles que o partilham. Então é um absurdo pensar que temos de obedecer àqueles que elegemos para administrarem o mundo. Não só não temos de obedecer, como devemos fazer o inverso: desobedecer.

Se os discípulos obedecessem aos ditadores do mundo, não haveria transformação, o mundo pararia e entrariam em colapso. Mas os discípulos obedecem a um princípio superior ao do mundo: obedecem às leis cósmicas da evolução, obedecem ao projecto dos Mestres.

Solstício Inverno, 2000
JC

Portugal



A razão de haver Portugal é a mesma de haver portugueses, pois que é a alma de uma nação senão a alma do seu povo? E se a alma do povo se realiza, cumpre-se o destino da nação e o do mundo também, pois que tudo é uma unidade. Assim, o primeiro passo a dar para a realização do mundo começa pelo homem e, antes de começar pelo homem, começará em Deus.

O que todos precisamos de compreender é a realidade divina como coisa una e integral. O resto virá por acréscimo, porque Deus falará a linguagem do ser desde que este lhe esteja receptivo e o queira escutar. E de que falará Deus senão de amor e de revelação? Deste modo nasce a ponte viva entre a criatura e o criador, entre a parcialidade e a totalidade.

Toda a nação é uma totalidade e se queremos atingir o seu íntimo, a razão mais profunda do seu existir, temos de a receber dentro de nós, pois tal como o espírito do Senhor nos fala no silêncio da alma, também o espírito da nação nos falará aí se lhe prestarmos atenção. É esta simbiose que pode abrir caminho ao espírito da profecia, o que já será um sinal de entrega naquele em que se revela este dom.

Fernando Pessoa é como um sinal de que a hora chegou: a Mensagem será a cifra desse sinal. Os caminhos que levam à revelação estão por todo o lado. Quatro são os nomes (hoje diríamos, as máscaras) que lhe dão voz, talvez porque o número da estabilidade e do próprio mundo enquanto realidade física, também o seja. Assim o símbolo do poeta se funde no do mundo aparente e juntos tentam a aventura de erguer o véu que vela o mistério. Para a revelação o poeta escreve quatro obras fundamentais: três em verso e uma em drama. Escreverá muito mais, mas serão como que sinais ou despojos, onde porventura o único significado será o de nos indicarem o caminho da Obra.

Fala-se muito da Mensagem, fala-se pouco ou nada do Marinheiro. E todavia é no delírio desse marinheiro perdido em lugar distante (tal mundo físico) que a alma portuguesa se descobre e reencontra. Se sonha com a pátria é para a imaginar novamente, se recorda o mundo é para o recriar. Assim esse marinheiro nos recorda o drama da saudade e nos reconcilia com esse anjo desterrado no mundo por amar demasiado a fragilidade da carne. E se o naufrago não retorna à pátria, transformada agora só em idealismo puro, também o anjo prometeico é condenado a vaguear pelo mundo e a partilhar a alma com todos os homens. Vemos neste a mesma elegia de Maranus, sendo que um se situava nas escarpas do norte e o outro numa ilha que nenhum mapa assinalava. Metáfora de Avalon ou de São Brandão? Em todo o caso, do paraíso perdido pela história e só possível de retomar pelo sonho.

Pessoa, escrevendo Mensagem e Marinheiro (dois MM como as iniciais dessa ordem mariana que tem a nação por raiz) fez um templo com as dimensões da alma nacional. E não apenas daquela que podemos ver (a do momento presente), mas a da poesia e de Deus. E depois uniu-as em si, na sua vida, para que todos soubessem e pudessem partilhar da revelação.

Quanto à sua obra, é grande porque não é sua, é antes mil gerações a falarem nela, a darem sinal de si e do destino que a todos foi e é comum: essa busca do Graal, essa tentativa de se assumir um povo inteiro como o cordeiro de uma aliança renovada, como o penhor de um pacto com as dimensões do próprio mundo, tudo isto tendo por testemunho uma comunidade de nações chamada Europa ou Mundo.

Março 1992
JC

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Esta lógica da esperança



Num mundo que desaba, onde procurar o que nos sustem? Na esperança de, como num passo de magia, trocarmos as voltas ao destino e da derrota eminente fazermos o passo seguinte. E basta ter a esperança de o fazer para que, como numa espécie de contágio colectivo, outros adiram e assim se torne real aquilo que não o era.

Somos vasos comunicantes, eis a questão. E para bem ou mal, partilhamos esperanças e duvidas, sobretudo estas, a ponto de que aquilo que não existe se torne verdade, como esta ideia omnipotente do dinheiro poder governar a vida, sendo certo que é a vida que tudo governa. Mas acreditar que assim seja, é na verdade faze-lo. Por isso, e contra toda a lógica do possível, o deus dinheiro é hoje a realidade absoluta de quem em nada já crê.

Segue a banda ao compasso da loucura colectiva. Hoje, mais que deus é o compromisso financeiro que regula a taxa de esperança ou desespero. São os juros, arbitrariamente regulados, que fazem oscilar a felicidade ou a depressão que de humana se torna social, logo económica, e por consequência política. Entramos assim numa espécie de espiral descendente, onde a verdade jaz invertida, e o que conta é a incerteza.

Desde há muito que a crise se adivinhava. Inevitável era vive-la. Sofre-la. Para que deste modelo egocêntrico, reduzido à dimensão abismal do egoísmo, pudesse o homem ascender à visão abrangente da comunicação, logo da partilha. E na partilha realizar o começo da subida íngreme em direcção ao seu deus.

Passar de um lado para o outro do rio é que custa. Sobretudo para esses senhores detentores das chaves do futuro que habituados a jogar o jogo da esperança, tem agora a dificuldade acrescida de terem de abrir mão do poder e de assumirem a falência. Ou isso, ou a rotura. Mas eles insistem, teimam, e muitos dos que os servem, teimam também. Teimam sabendo que tudo está por um fio, e que das glórias passadas já só resta o milagre de ainda haver gente que acredite.

Exalta-se a imaginação que manda manter a ideia fixa de haver futuro para uma economia de ocultação. Ganha força a esperança de haver solução para roturas sucessivas, sejam pessoais ou colectivas, sociais ou espirituais. Impõe-se, ou tentam alguns impor, como solução derradeira, a ideia absurda de que basta ir sempre em frente para que o destino ceda. Quando o certo é que o destino, empurrado, só pode precipitar a queda.

Esta teimosia é-nos congénita. Trazemo-la da caverna sombria, esquecida há muito nalguma dependência do nosso inconsciente, e por isso incapazes de saber quando deter o gesto que a torne eterna. É que teimar contra o rochedo inamovível é na verdade quebrar as forças, poucas e incertas, e fazer do adversário aquilo que ele não é: um deus omnipotente.

Algures, numa curva da estrada, teremos de ir em frente. Não por cegueira ou recusa em ver o que é evidente, mas por decisão de saltar o muro que nos mantém inconscientes. E deste aparente fim fazer o impulso para um mundo mais ameno e uma vida mais sensível. Sobretudo, realizar essa esperança que moveu sábios e santos em direcção ao desconhecido.

Possa o divino, mesmo que vestido de carne, ou sobretudo vestido dela, ajudar-nos no entendimento do que a vida é se despida de malevolência. Possam os maiores de entre nós entender que só no estender da mão aos que hoje enganam e seduzem com falsas expectativas, haverá lugar para esse futuro colectivo. Não no exercício de um poder sem regras, mas no serviço aos que precisam. Não para esgrimir dinheiros em paraísos, mas na certeza de sanar a fome de bens e felicidade daqueles que tendo nascido tem por isso o direito à esperança.

Setúbal, 5 de Maio de 2010
JC

A questão do dinheiro



Estranho ouvir dizer que não há dinheiro. Sabendo-se, como se sabe, que o dinheiro é uma invenção. Ora sendo invenção, não se percebe como pode não haver uma coisa em que todos acreditam. Pode é dar-se o caso de haver pouco, sendo a solução fazer mais, pôr mais dígitos em circulação, e distribui-lo.

Na distribuição do símbolo dinheiro é que estará a dificuldade. Porque alguns se assumiram seus guardiães e agora não querem abrir mão desse encargo vitalício. Pelo contrário, querem que quem não o tem lhes peça, que lhes pague com juros, e que se submeta disciplinadamente a tudo que lhe seja exigido.

E isso continuaria a acontecer simplesmente porque é habito, não fosse a quebra de relação ter começado entre esses senhores e quem lhes pede. Mas havendo desconfiança mútua, romperam-se os elos de uma corrente que parecia eterna. Afinal, quem empresta quer lucrar cada dia mais, e quem pede quer pedir sem fim à vista nem preocupações de juros. O resultado é um conflito de interesses que não se vê onde vai terminar ou até se termina.

Por isso, quando oiço dizer que não há dinheiro para emprestar aos países que devem tanto que já lhes é difícil pagar, não os empréstimos mas os juros, começo a entender que esta invenção chamada dinheiro tem de mudar, sob pena de nos enterrar a todos.

Depois, entendo também que a falta de dinheiro para emprestar a quem quer ou precisa, não é tanto uma falta de liquidez, já que a garantia do dinheiro é tão abstracta como ele, sendo antes uma questão de ganância institucional ou de poder esgrimir com um poder absoluto.

Por ultimo, que será difícil chegar-se à vida gratuita enquanto se acreditar em lugares onde todos vão por e buscar dinheiro, cartões que se transformam em dinheiro vitalício desde que se pague para os ter, e senhores que mandam em toda a gente simplesmente por terem sido nomeados gestores.

Vejo gente a quem a corrupção não ofende a esgrimir com demagogia face à necessidade alheia, e espanto-me por andarmos todos a reboque de uma invenção que nos devia ajudar a trocar coisas em lugar de tomar posse das nossas vidas.

Mas tomou porque dentro de cada homem haverá um gestor havido de ter lucro. Tal como os que agora existem, os tais a quem ofende pensar num sistema em que ninguém tutele a vida. Talvez porque assim já ninguém lhes pedia emprestado, nem lhes pagava juros, nem os mantinha como deuses de um Olimpo falido.

E a haver dinheiro, tinha de ser assumido que era de todos e para todos usarem como símbolo, não como realidade que nunca foi nem pode ser. Coisa que bancos, governos, e instituições nacionais ou estrangeiras, se negam a abrir mão. Afinal vivem da mentira de serem necessários. Quando não são.

Necessário é o sustento de cada dia. É a liberdade de pensar e agir. É a possibilidade de comunicar com toda a gente. E é a consciência de cada um ficar serena para que, face aos desafios, seja capaz de os viver.

Perguntar-se-á como fazer isto sem dinheiro? Responderia que fazendo troca de bens sem os avaliar. Logo sem introduzir o factor lucro que é sempre uma avaliação subjectiva sobre um valor também ele subjectivo. Estendendo-se isto ao trabalho e sua remuneração. Mas também a todo o serviço emprestado, a toda a criação seja ela artística, intelectual, ou científica. Estando vedado a toda a gente a possibilidade de avaliar, mesmo que simbolicamente, o valor relativo ou absoluto, do que quer que fosse. Tanto mais que não se trocam bens, na verdade, mas vidas. E estas não têm preço.

Mas, a haver dinheiro, que se assuma desde logo a sua realidade virtual, para que não se caia, como se caiu, na tentação absurda de se dizer: isto é meu, aquilo é teu. Quando o certo é que nascemos, vivemos, e morremos todos no mesmo planeta, co-proprietários em regime de utilização colectiva, a ninguém cabendo deter uma parcela por mais pequena que ela seja. Ainda mais, como é hoje o caso, sendo tão grande que tem a capacidade de por em risco a sobrevivência da maioria, ditando as regras da quantidade de dinheiro circulante, do juro a cobrar a cada um, do limite do credito a conceder, e ainda, pior que tudo isso, da maior ou menor credibilidade daqueles que precisam de pedir.

É tão absurdo e ridículo este esquema que custa a entender o motivo porque continuamos todos a mantê-lo. Estando provado que a todos fere e a ninguém ajuda, aldrabando para se manter, confundindo para existir, dividindo para reinar, de tudo fazendo tábua rasa sejam valores ou pessoas.

Com tantos defeitos e tão perfeitamente claros e assumidos, só mesmo uma enorme loucura pode manter este sistema. Mas o ser humano, no seu amor insuficiente e projectivo, tem a rara capacidade de endeusar o que nada vale e de excluir o que lhe podia dar a vida. O dinheiro e seu abuso é apenas mais um sintoma.

20 de Maio de 2010
JC

Inventar o mundo



Costumo pensar que um dia vamos todos acordar num mundo feito de valores em lugar de interesses. E que esse interesse maior, pai de todos os outros, a ideia de que alguém é dono de alguma coisa, terminou como terminam os sonhos, sabendo nós ao acordar que foi sonho apenas.

Depois, por consequência, que a ideia do lucro, que resulta da apropriação de bens, pessoas, e ideias, terminou também. Resolvendo-se assim os dois maiores problemas de todos nós.

Imagino a dificuldade de alguém pensar que aquilo que recebeu por herança ou compra na verdade não lhe pertence, antes pertence a todos, sendo ele um mero instrumento de gestão dessa posse colectiva. Tampouco lhe pertence o lucro que o uso desse bem lhe pode trazer. Antes pertence, na verdade, a todos que com ele partilham a vida.

E por imaginar a dificuldade dos outros é que não insisto demasiado na ideia, antes a mantenho como um tesouro a que de vez em quando vou buscar inspiração para falar da vida, de deus, sobretudo da felicidade. Sendo certo que tudo isso estaria disponível no momento em que abdicássemos do ter para o trocarmos pelo ser.

Como diria o amigo Agostinho: não somos nós que temos as coisas, são elas que nos tem. Assim é, e cada dia mais o confirmo neste nosso mundo de gente infeliz. A ponto de alguns viverem e fazerem viver em escravidão por amor à abstracção que vem do terem em lugar de partilharem, ou de se partilharem a si, descobrindo a liberdade do usufruir. Mas isso nasce do amor e são raros os que amam suficientemente.

Deveria bastar o sofrimento implícito no esforço para gerir e defender a posse do que se tem, para nos libertar dessa ideia levando-nos, imediatamente, pelo caminho da partilha, já que nela acontece a liberdade, o prazer, e sobretudo a felicidade que se multiplica.

Estranho cada dia mais esta nossa civilização baseada no abuso do possuir, na exibição absurda, na vaidade desmedida. E na cobiça alheia sobre o que se imagina que o outro tem, não se tendo em conta a dose de infelicidade, de cuidados dobrados, que isso traz.

Deve ser grande o medo daqueles que tem muito ou imaginam que tem. Esses, devem viver em casas armadilhadas, como antigamente se vivia rodeado de feras agressivas e guardas. Tudo na tentativa fútil de garantir uma segurança ilusória, quando bastaria dar aos que cobiçam o que temos, faze-los donos em co-propriedade, para que em lugar de termos inimigos tivéssemos amigos.

É a vaidade excessiva do rico que gera a cobiça do pobre e o leva, também ele, pelo caminho do possuir, julgando assim subir a escala do que se é, quando na verdade é descê-la e descer com ela.

Na ostentação dos poderosos vejo toda a miserabilidade do mundo, a sua insuficiência, o seu desvario, a sua incapacidade para gerar felicidade. E por consequência, antecipo a sua queda. Mas também, julgo, a antecipam os detentores do poder. Ou não teriam necessidade de se escudarem em leis arbitrárias, em governos corruptos, e em hábitos de possuir. Se o fazem é por medo.

Tivessem os pobres deste mundo a consciência de que a vida, ao lhes negar a propriedade, lhe deu a liberdade de nada possuírem. E com isso os colocou num estado independente onde a alma pode florir, o coração abrir-se aos outros e à vida, e tudo o que se faz ter o valor de ser genuíno.

Mas os pobres deste mundo vivem o mesmo processo de pensar, logo não usufruem do bem maior que a vida lhes deu: a liberdade. Nem contagiam outros, nem são exemplo que valha a pena seguir, nem, muito menos, demonstram aos poderosos deste mundo, que na verdade nada tem que valha a pena cobiçar, muito menos lutar para possuir.

Fossem os pobres ricos de vida íntima e os poderosos haviam de querer ser pobres para ser felizes. Mas pobres e ricos tem o mesmo receio: de não terem o que comer, nem vestir, nem onde se recolherem. E por isso lutam entre si pela inutilidade da posse exclusiva.

Vejo um mundo, não sei se passado se futuro, onde toda a posse foi destituída de sentido. Onde o mundo é agora um lugar calmo alheio à ideia da guerra por terras, bens, ou privilégios. É um mundo onde vale a pena viver, crescer, fazer outros crescer connosco, sabendo-se que toda a ideia ou acção, se digna de interesse, tem outros que lhe dão continuação. E desse modo a tornam colectiva.

Vejo um mundo sem medo, logo sem agressão. Sem gente a policiar o que outros fazem, por ser inútil e absurdo faze-lo. Antes ajudando-se uns aos outros, em todo o lugar sendo recebidos como amigos mesmo que ninguém se conheça, porque a curiosidade sobre o outro é agora mais importante que o receio em o conhecer.

Vejo um mundo que funciona como uma pequena aldeia. Onde as tarefas de cada dia são distribuídas ao amanhecer e porque são dadas e recebidas com prazer, a ninguém cansam nem esgotam a paciência, antes fazem crescer a alma e a imaginação. Sendo isso o maior bem.

Vejo um mundo onde a relação humana, em paralelo com a relação seja de que espécie for, se baseia já não na posse do outro mas no partilhar de sentimentos. Logo estável mas também, não o sendo, nem por isso aprisionante, já que a solidão se tornou um processo abolido, ou não fosse cada ser encarado como amigo e parte do que somos.

Não vejo indústria, excepto aquela que resulta da necessidade de fazer mais fácil o que existe. Mas é uma indústria reduzida ao imediato e ao lugar onde se cria.

Tampouco vejo comércio. E no entanto vejo toda a gente a trocar bens. Mas fazem-no por gosto, sem terem nisso a ideia do lucro.

Vejo grandes casas de uso colectivo. Construídas em comprimento sobretudo. Salas comuns a vários usos e pequenos dormitórios. Um pouco como os mosteiros antigos. Mas as portas estão abertas para quem as queira usar e ninguém pensa em fechar a sua à noite por medo.

Vejo gente que circula, que tem o gosto de viajar de terra em terra. São os vagabundos da cultura, sendo esta uma ferramenta do espírito, logo uma troca. Mas também outros que se fixam aqui ou ali, conforme o seu gosto pessoal, criando povoados permanentes, coabitados por outros que vão chegando ou partindo.

Não será um mundo preparado para a guerra com outros mundos. Nem capaz de andar a cavalo de naves espaciais a explorar riquezas aqui ou ali. Não é, de certeza, um mundo tecnológico. É antes uma espécie de mundo das fadas, magico por natureza, simples por opção, feliz porque os homens o quiseram assim.

Há outras possibilidades, mais próximas do que hoje somos. Espécie de pontes entre o nosso presente e um distante futuro. Mundos intermédios, de tecnologia não poluente, de medo desconhecido, de partilha assumida, de gente que planeia a vida, que antecipa o futuro.

São o que hoje somos, excluído tudo aquilo que nos perturbava. Há industria porque o homem gosta de criar tecnologia. Há comercio porque o homem gosta de trocar bens. Há cidades porque o homem precisa de lugares onde concentrar estruturas. E depois há lugares de paz, de bem-estar absoluto, de felicidade. Pequenas ilhas onde tudo foi concebido para o descanso do corpo e a renovação da alma.

Os transportes são colectivos. As casas também. Os bens estão disponíveis. As escolas são frequentadas por todos, porque todos querem aprender mais. Nas universidades pratica-se o conhecimento: são os lugares dedicados às ciências puras, à imaginação. Ali se desenvolvem as tecnologias, inventando-se o necessário à civilização.

A guerra é desconhecida. As línguas são estudadas pela curiosidade de terem existido. Há agora uma língua comum construída com base na matemática da comunicação e por isso simples mas abrangente, nomeando cada coisa, ser, ou função.

A gestão é feita por todos, para todos. Na prática, existe agora uma espécie de povos unidos onde cada um participa. O modo de o fazer é simples: usando a tecnologia que permite a comunicação em tempo real, dá a conhecer o que pensa para todos os outros saberem. E desse modo se instalou a plena democracia.

Sendo as decisões tomadas fruto do pensar e sentir de todos, deixou de haver decisões parciais, arbitrárias, ou incompletas. Já que é o saber colectivo que lhes está na base. E por serem colectivas, todos as assumem como suas, dando-lhes o melhor de si.

Este é um outro mundo igualmente possível. Mas a acontecer, é a antecâmara do outro. Porque um mundo que desistiu da infelicidade, acabará por se tornar um mundo simples, sem vaidades. Logo, um lugar de gente calma.

Não é por isso importante o modelo escolhido. Importante é que façamos a escolha contra a infelicidade colectiva. E o mais acontecerá.

17 de Maio de 2010
JC

A ideia do Espirito Santo



Nada vejo que impeça a vida gratuita a não ser, claro está, a dificuldade de todos de abrir mão do supérfluo. Melhor: de olharem em redor e perceberem que a ideia da abastança individual mais tarde ou mais cedo tem de ceder para a ideia da utilização colectiva.

É o egoísmo que tarda em manter a exiguidade de uma vida que podia ser de beleza, de grandeza, de partilha. Não as impossibilidades de uma natureza sempre pródiga, nem de um espaço de vida que afinal é de todos e para todos existe.

Proporia uma ideia: que à nascença cada ser fosse assumido como cidadão de pleno direito (estando os deveres incluídos) num mundo que também lhe pertence. Que a cada um fosse dado uma espécie de cartão de credito sem credito limitado, para que tudo o que lhe fosse necessário o pudesse ter. E que este cartão fosse vitalício, que o acompanhasse como uma espécie de garantia constitucional daquilo que no mundo lhe estava acessível.

Imagino que a haver um sistema destes ninguém contra ele atentaria. Nem haveria necessidade de esgrimir com o ter mais ou ter menos, dado que todos teriam o preciso, sendo isso o resultado da criação de todos para todos disponível. Nem haverias guerras ou crimes de lesa algo ou alguém, pois que no vácuo do possuir as necessidades de todos se poderiam exprimir.

E disto resultaria, quem sabe, uma espécie de frugalidade, já que a ninguém era necessário reter ou fazer stock de bens sempre disponíveis. O resultado seria um planeta saudável, auto-sustentável, capaz de gerar saúde em lugar de doença, riqueza em lugar de pobreza, espiritualidade em lugar de fugas mais ou menos padronizadas.

É quimérico pensar assim? Talvez! Mas o caminho que levamos ou nos há-de conduzir a um beco maior que aquele que já temos, passando pelo desvario das populações carentes logo violentas na manifestação do seu ressentimento; ou nos levará ao paraíso do consumo estatizado, organizado pelos mesmos que multiplicam o crédito, já que sem este ficam retidos os produtos e as fabricas e comércio paralisam.

Talvez pensemos que o dinheiro é uma realidade que se suporta a si própria. Não é. É a ideia que dele temos que o mantém como valor. Foi a lógica da comunicação entre os povos que o tornou importante. Foi a necessidade de transferir bens que lhe criou a oportunidade. Mas hoje, em que os países, mesmo os mais ricos, já não tem ouro armazenado na contrapartida da moeda circulante, e em que esta se transformou em informação digital facilmente circulável em ambiente informático capaz de percorrer o mundo sem nunca se deter, nem precisar, para manter o valor abstracto que sempre teve, é escusado insistir na ideia de que é necessária a cada cidadão a posse de uma parcela para ter direito a viver.

Ao contrário: a cada cidadão só é necessário que o sistema mude, que cada um aceite o direito do outro como igual ao seu, e que em lugar de lhe fechar a porta da oportunidade, lha abra. Então todos poderão ser companheiros de jornada, cabendo a cada um uma cota da responsabilidade colectiva que manda manter, multiplicar, e gerir, os bens que são de todos.

O importante era uma nova educação baseada não no ter mas no utilizar. Não no possuir com direito de exclusividade, mas no usufruir da criatividade colectiva para todos existente e disponível. O que levaria ao cume da criatividade, logo da comunicabilidade, por consequência ao da imprevisibilidade. Sendo o paraíso a consequência.

Tal educação é hoje uma imperiosa e urgente necessidade. Ou a exorbitância dos poderosos cavará um fosso tão profundo que até o mais sereno dos homens terá de pegar em armas para defender a legitimidade de existir. E isso é um preço que devíamos evitar. Tanto mais que é absolutamente inútil.

Com as fabricas cada dia mais automatizadas, e as que o não estão é por se querer manter gente ocupada temendo-se as consequências do ócio generalizado. Com a multiplicação da produção a roçar o supérfluo: o abate sazonal de milhares de modelos para manter a rotatividade dos stocks e as fábricas em plena laboração, são um bom exemplo. Com os bens alimentares e outros a serem destruídos ou oferecidos a instituições de caridade bem como a países do terceiro mundo para evitar o descalabro nos preços, quando o lógico era que só se produzisse o que era necessário. Que sentido faz não abrir mão deste capitalismo que a todos escraviza mesmo que a alguns com o excesso e a outros com a penúria?

É tempo de pensar colectivo. De ver o mundo como uma entidade. De assumir a humanidade como um só ser. E de fornecer a toda a gente o mesmo: liberdade, educação, alimentos. Responsabilizando todos na manutenção porque para todos existe.

Será preciso deslocar povos inteiros? Pois que se faça! Antes isso que as guerras fratricidas de sempre e para sempre. Pior ainda, a desertificação de países por falta de populações a contrastar com outros onde a pobreza das regiões e dos recursos não permite a sobrevivência.

Será necessário gerir a fertilidade? Porque não se isso contribuir para equilíbrios sociais e humanos? Tanto mais que, na gestão da capacidade procriativa começará, quem sabe, a gestão da prevenção das doenças. Abrindo isso caminho a uma era de saúde criada e mantida.

Será preciso ir às conservatórias dos registos prediais comerciais ou industriais e fechar-lhes o sentido que nunca tiveram, sendo sempre uma agressão ao direito de utilização de quem mais precisava, não tinha, e estiolava na sarjeta havendo outros que mantinham casas fechadas e fortunas em contas cifradas, tal o seu absurdo.

Mas também ir pelas cidades fora a encerrar milhões de estabelecimentos desnecessários, já que para o consumo consciente só é necessário um por quarteirão ou bloco habitacional ou vila e aldeia, podendo este ser uma espécie de armazém colectivo, onde por secções estejam todos os bens necessários à sobrevivência, sejam máquinas ferramentas, meios de transporte, vestuário, saúde, ou alimentos. Ficando desde logo disponíveis os que passavam a vida atrás de um balcão esperando horas a fio, às vezes vidas a fio, por clientes inexistentes, havendo assim mais gente para ser criativa e menos tédio a lamentar.

Será preciso imaginar ou escolher uma língua única em detrimento de todas as outras? Pois claro que sim! Mas, mais uma vez, se isso for a solução para a comunicação de todos, que preço tão pequeno, que ganho tão imenso!

Língua que até pode ser sorteada à sorte, numa espécie de roleta onde estejam representadas todas as línguas. Porque o que importa não é o enaltecimento desta ou daquela mas a escolha em fazer a humanidade comunicar e entender-se.

Não havendo necessidade, nem tendo lógica faze-lo, deixar cair no esquecimento línguas próprias assim como culturas que se tornaram nobres de tanto criarem. Havendo, isso sim, a possibilidade de todos as estudarem, enriquecendo a vida própria mas também o imaginário colectivo.

Será preciso dissolver partidos, parlamentos, governos locais ou mais ou menos globais? Provavelmente será! Mas toda essa gente terá a oportunidade de renascer, de fazer coisas em que nunca pensaram, sobretudo em trabalharem não para o grupo reduzido dos seus pares ou amigos, mas para a totalidade dos seres.

Inversamente, será necessário conferir poderes adicionais às estruturas internacionais, dando-lhes a dimensão que nunca tiveram de representação e gestão. Pois bem, que se faça. Já que isso corta a direito com interesses particulares ou nacionalistas, e abre caminho a uma mundialização dos povos, das economias, sobretudo das reais necessidades. E torna inúteis os grupos de pressão, os lóbis deste ou daquele interesse específico.

Modelos de gestão há tantos que é só escolher. Sendo lógico pedir a todos que são criativos que se façam pares uns dos outros para bem de toda a gente. Simultaneamente que se cresça para uma gestão inteligente e globalizada, já que a globalização da comunicação o permite instantaneamente. Sendo possível antecipar uma época futura em que qualquer decisão que afecte a maioria, por todos seja decidida. Sendo isso a autentica democracia.

Escusado será dizer que os gastos astronómicos e desde sempre encarados como vitalícios com a guerra e suas ficções, cessaria por obsoleto, já que os povos em lugar de se guerrearem por interesses duvidosos passariam a trabalhar em conjunto na solução de problemas agora comuns.

Só a poupança gerada pela inutilidade dos conflitos, mais os armamentos e por arrastamento os milhões de homens deles dependentes, é por si só capaz de pagar a sobrevivência de todo o planeta e suas gentes.

Depois, por se juntarem os recursos de um planeta, a exploração do espaço tornada possível. E daí, um imenso desenvolvimento, não na ideia de competir contra uns e outros (pecado imenso de orgulho) mas na certeza de que, algures espaço fora, outros povos existirão com quem vale a pena trocar ideias e experiencias.

Mas também, juntando recursos dispersos, explorar mares profundos, lugares hoje inóspitos e de impossível habitação, mas que, tal como à superfície, um dia poderão conhecer outras lógicas de utilização. Quem sabe mesmo, prover à sobrevivência humana por excesso de gente.

Um mundo bem distinto pode surgir deste que nos habituamos a considerar eterno na lógica das estruturas, quando estas mais não são do que o resultado da maior ou menor capacidade criativa.

Sendo verdade que é altura de mudar para geral o que é hoje sectorial, para mundial o que é apenas nacional, e para bem de todos o que agora só pertence a meia dúzia. A consegui-lo, salvamos o planeta e a nós também. Não o conseguindo, adiamos e sofremos.

É possível que esta ideia não tenha ainda cabimento. Que tenhamos de ir lentamente pelo caminho do cartão de credito, gradualmente de credito ilimitado porque impossível de cobrar, até à generalização do credito em paridade com a cidadania.

O mesmo para os povos que andam de um lado para o outro em busca de lugar para viver, o que torna abstractas as fronteiras senão mesmo as línguas, os países, as soberanias.

Outro tanto para os povos geridos arbitrariamente através de regimes pseudo-democraticos onde o voto faz o sentido de legitimar o direito à governação, quando na verdade é o capital que manda que subsidia, que põe e dispõe, que decide.

Por fim, para as estruturas de ensino, de educação, de investigação, de cultura. Mas aí a coisa é mais fácil porque esta gente há muito se afastou da ideia redutora de um mundo estreito fechado na ideia de países.

Talvez tenhamos de esperar que as coisas tombem sob o peso excessivo de estruturas tornadas eternas pelos hábitos não pelas necessidades. Talvez precisemos de mais estertores desta natureza castigada até à rotura que, manifestando-se, a todos pode por em perigo mas não maior do que aquele que todos criamos. Talvez tenhamos de aguardar para que o divórcio entre as multidões e os governantes seja um facto indesmentível, facilmente demonstrável nas eleições vazias.

Às cidades ciclópicas da actualidade só pode esperar a queda, a menos que o mundo se torne uma cidade ciclópica feita da fusão de todas as que existem. O que é sempre uma possibilidade a ter em conta. Mas se assim não for, e não será se tivermos alguma réstia de normalidade, então é inevitável a sua queda. Logo a de tudo aquilo que lhes esteve na origem. Por inerência uma certa forma de pensar. A queda das cidades ciclópicas é na verdade a queda de todo um modelo de civilização: o da massificação.

Também aos gigantes com pés de barro deste nosso mundo, ocultem-se onde se ocultarem e lancem as cortinas de fumo que lançarem, mais tarde ou mais cedo ficarão reduzidos à sua própria exiguidade. Logo ao desaparecimento. Por inerência, ao nosso esquecimento.

Ao sistema corrupto e larvar que suporta tudo isto só pode acontecer o mesmo. Durará, claro, aquilo que o nosso medo durar. Mas também o medo de não ter, ou de precisarmos de quem nos tutele a vida e o pensamento, tem o seu tempo próprio. Depois cessa. Ou cessamos nós de o acreditar. Não importa!

Gosto de pensar que os desmandos do poder são sempre o sinal inequívoco da sua fragilidade, e que só temos de aguardar serenamente por eles para nada fazer que detenha a ruptura eminente. Depois é só ir em busca daqueles que querem construir um mundo novo feito de novas premissas.

A ser assim, este sistema feudal de que governos e oposição se servem para resistir à necessidade de mudar o que não presta, tem os dias contados. E não foi preciso fazer guerras ao dinheiro nem andar por aí a escavacar bens deste e daquele. Foi só entrar no carrossel do consumismo desenfreado, do egoísmo globalizado, e do apetite desmedido e sem freio que tendo o exemplo nos grandes deste mundo, só podia, como fez, criar discípulos sem fim em todas as classes de gente.

Pois bem, é aqui que nos encontramos. E daqui só sairemos através de uma grande convulsão. Que ela virá é só uma questão de tempo.

Setúbal, 13 de Maio de 2010
JC