quinta-feira, 16 de junho de 2011

A questão da R+C



A propósito da R+C, enquanto filosofia esotérica, tudo estará ainda por dizer. E não por falta de documentos ou de vivência histórica, sendo aliás uma das poucas vias que pode apresentar provas de actuação ininterrupta ao longo dos últimos séculos. O que se passa é mais complexo: assumindo-se diversos grupos, sobretudo a partir do século 17, como detentores da legitimidade filosófica, e sendo todos eles bastante diversos na forma de abordarem os mistérios e a gnose, criou-se uma espécie de torre de babel em que cada um fala a sua língua e em que ninguém na verdade se entende.

Posto isto, de que se fala quando se fala de filosofia R+C? Fala-se do que cada grupo entende por esse termo, mesmo que um entenda Cabala Judaica e outro Magia Operativa: é o caso da R+C de Papus e da Aurora Dourada de Crowley.

E no entanto, apesar de na aparência não existir concordância sobre a definição do termo, continua a existir tacitamente acordo quanto ao uso da expressão R+C a propósito de um conjunto de forças, de arquétipos, de símbolos, e de discípulos que ao longo dos anos os vem manifestando.

E nisto é que reside o paradoxo: que se aceite esta disparidade de conceitos a propósito de algo que na aparência é uma só coisa. E não só que se aceite, mas que se viva e defenda essa mesma diversidade, como se nela residisse uma das vertentes da própria filosofia.

Esta questão é tanto mais interessante e estranha, quando se sabe da incapacidade humana para aceitar a diversidade. E ainda por cima aceitá-la nos outros. E pior ainda, legitimá-la.

Tudo isto nos leva a concluir duas coisas: primeiro que a R+C não é uma filosofia intelectual, mesmo que se apoie em determinados princípios esotéricos, é antes uma filosofia de vida ou um projecto; segundo, que falar de R+C só tem razão de ser desde que se entenda por esse termo o seu sentido mais vasto, ou seja o de cúpula organizativa ou de hierarquia.

De acordo com o Mestre, perde-se na origem da humanidade a própria origem da Ordem dos Cavaleiros de Aton (vulgo R+C). Oriunda das estrelas e das hierarquias que de longe velam por nós, a sua origem (embora com outras designações e atributos) extravasaria aquilo que entre nós aconteceu e que podemos ser tentados, numa abordagem imediata e relativa, a pensar. Por outro lado, e ainda segundo o Mestre, as suas origens, neste planeta, remontariam àqueles que construíram e edificaram a civilização do Alto Egipto.

Sendo isto verdade, teríamos de fazer remontar as origens da R+C aos inícios da civilização e humanização do próprio planeta, logo e por inerência, àqueles que mais tarde se vieram a constituir em organização planetária e em garantes da própria evolução: estamos falando da Grande Fraternidade Branca.

É fácil de perceber o que tais origens implicam: um compromisso com as hierarquias estelares e seu projecto para este planeta.

Já não, como é norma, um plano de duração relativa suportado pela necessidade de manifestar numa dada época esta ou aquela ideologia, mas algo demasiado vasto para que lhe possamos aperceber os contornos ou para que, mesmo vivendo integralmente em função dele, algum dia nos possamos assumir como parte sua.

Esta dimensão, demasiado vasta e complexa, é que tem tornado, a nosso ver, impossível definir a R+C como se definiram tantas outras organizações. E se é verdade que através de algumas delas foi a própria Ordem que se manifestou (será o caso dos Irmãos Templários), o estudo destes grupos em nada nos elucida ou ajuda a entender o projecto maior em que tudo isto se insere.

Talvez por esta razão, ou ainda pela própria indefinição em que os grupos ditos rosacrucianos se movem, optaram os historiadores por se agarrarem a fragmentos históricos (ou àqueles que os viveram) como forma de explicarem algo que a todos ultrapassa: o projecto R+C.

O fio da história não é linear, mesmo quando aqueles que o vivem apenas se situam no plano imediato.

É verdade que existe a história cronológica e que esta se baseia num conjunto de forças que se vão expressando por uma continuidade, mas paralelamente a esta continuidade existirão outras forças (chamemos-lhes arquétipos) que impregnando o inconsciente colectivo e individual, fazem por vezes emergir aspectos que desencadeiam, ou a repetição cíclica ou o salto no desconhecido. Estes dois movimentos, linear por um lado, e descontínuo por outro, são paralelos e a nenhum deles podemos com propriedade atribuir tudo.

A história da R+C não faz parte da Historia, mesmo que os seus discípulos façam parte dela. Movidos por forças que na maioria das vezes não entendem, as suas acções ultrapassam-nos. Inserem-se, é verdade, num projecto contínuo, mas porque ligados ao seu tempo e às contradições da sua época, mais não entendem que o pequeno fragmento que através deles emerge. E mesmo quanto a este, dificilmente o vêem na sua totalidade.

A história da R+C é (a nosso ver) a história das almas em manifestação temporal e da sua encarnação sucessiva para dar corpo à Obra.

Vindos das estrelas, dormem ainda em vida suspensa, depositados os seus invólucros carnais nessas naves luz que, pairando em orbita numa dimensão paralela ou escondidas em cavernas profundas, lhes servem de lar e de refúgio. É assim desde sempre e para sempre será a menos que esta humanidade sua filha e herdeira ultrapasse a barreira psicológica do egoísmo que faz odiar o irmão e amar o abismo. É assim há tanto tempo que já lhe perdemos a recordação e sobre essa época só temos lendas.

Sobre o antigo Egipto temos mitos, sobretudo aquele de que a civilização terá começado ali. Na verdade até pode ter começado, sobretudo se pensarmos que sob o símbolo Egipto se esconde, não a realidade geográfica que lhe associamos, mas uma espécie de terra simbólica ou mistura de diversas épocas.

O Egipto do Mestre não é nem foi nunca o Egipto de que a História fala. O Egipto do Mestre foi antes uma civilização que se estendeu por todo o planeta e que em certos lugares, escolhidos decerto pelo seu telurismo, criou focos de cultura e humanidade cruzando espécies e depositando sinais. Portugal (ou melhor, a Lusitânia) será um desses lugares.

Na bandeira da nação lusa, numa genial intuição ou antecipação do futuro, alguém colocou os sete castelos da Iniciação. É assim, desta forma estranha e às vezes absurda, que a realidade emerge e nós, ou vemos porque sabemos, ou passamos ao lado e não damos conta.

Na bandeira, toda ela símbolo e analogia (como diria Pessoa), estão os lugares reais da Obra dos Irmãos. Mas está também o próprio mundo, já não e apenas na configuração limitativa das terras e dos continentes, mas na liberdade espiritual que os suporta. Está ainda, para quem queira ver, no cruzamento das linhas e na figura da cruz, esse reino agartino enquanto lugar central para onde convergimos. E por ultimo, mas não menos importante, nos dois campos paralelos, verde e vermelho que, unidos darão lugar ao ouro filosofal da esfera armilar (ou Obra realizada) as forças básicas, casadas e unidas na realidade maior que é a própria Obra. É isto tudo e muito mais que a bandeira oculta.

Aos Lusos sucedeu Portugal. À primeira fase do projecto de espalhar a luz e definir os contornos da civilização planetária através de povos organizados em núcleos restritos, sucedeu a segunda fase de encabeçar a Europa e de lhe dar um rumo. Por isso a independência, por isso a fase das Descobertas, por isso a busca do reino do Pai João, por isso ciclicamente o emergir de dinastias que, fruto da genética celeste e terrestre, encarnaram e manifestaram o casamento alquímico do Céu com a Terra através do Rei e da Rainha.

Foi assim com Dinis e Isabel. Porquê? Para anunciar os alvores de uma nova dispensação, a mesma que estamos agora tacteando: esta ideia de haver um Quinto Império que suceda e sintetize os quatro que já houve, mas que seja maior do que estes e sobretudo que não os copie.

Sobre o Quinto Império podemos imaginar quase tudo, sobretudo se recuarmos ao simbolismo das festas do Espírito Santo que desde esta dinastia se organizam. Vejamos as ideias chave: coroação do Menino Imperador (ou seja, do Rei do Mundo); abertura das prisões e libertação dos cativos (ou seja, libertação das prisões carnais e ideológicas em que a humanidade se aprisionou e onde sofre); partilha e distribuição dos bens por todos (ou seja, dar a cada um segundo as suas necessidades e assumir que na verdade tudo pertence a todos); entronização da pomba enquanto força do Espírito Santo (ou seja, assumir que a nova era, regida pela Criança, representa um salto qualitativo e não uma mera continuidade daquilo que somos).

Portugal titubeou face à dimensão da missão que lhe era pedida, titubeou e perdeu-se: ou não?! Aqui as opiniões divergem.

Para uns sim e por isso a necessidade de expiar em Alcácer Kibir os pecados da gula, do egoísmo e da riqueza inútil. Para outros não, porque afinal Portugal fez as Descobertas, contribuiu para aproximar os povos, gerou cultura e fez-se grande, tão grande que chegou a tentar intitular-se Centro do Mundo e ao Rei de Portugal, pela mão da Igreja, houve quem o coroasse Imperador.

Era assim o Portugal imperialista de antes do terramoto e mesmo depois deste continuou sendo através desse projecto urbanístico que criou uma rua Augusta, tendo a ladeá-la uma de Ouro e outra de Prata, todas desembocando numa praça onde tutelavam os poderes simbólicos e reais das artes, dos ofícios, dos políticos e da finança.

Como estranhar o absolutismo de reis e de ministros que, assumindo-se ou supondo-se mensageiros de Deus na Terra, exorbitaram por isso os poderes que a orientação dos outros lhes concedia? Ou até, mais perto de nós mas não menos estranho, esse absolutismo de Salazar que, copiando o pior dos reis “por direito divino”, se acabou assumindo uma espécie de messias de um estado novo só na aparência.

Cópia em segunda mão desse outro messias que havia de conduzir a Alemanha (nação gémea de Portugal e outro dos castelos da R+C) para o cadafalso? Na verdade não: Salazar reinou e viveu como um monge. Preferiu às luzes da ribalta o silêncio do claustro, e também não consta que tivesse alguma vez adorado os deuses antigos, pelo contrário.

Época estranha a de Salazar de Hitler de Mussolini e de Franco, onde de repente emergiram forças contracionárias (talvez em resposta à revolução bolchevique) e onde os ditadores apareceram vestidos de sinais messiânicos, encarnando e invocando os abismos da psique.

São estes os sinais do tempo: palcos improvisados onde se celebra a entronização de forças obscuras. E no entanto, disfarçados e intocáveis, os discípulos da R+C não desistem.

Para onde vai o mundo? Vai para onde quisermos: vai para o abismo do absolutismo despótico ou para a glorificação da Criança e para a edificação do reino do Espírito Santo. Nós é que escolhemos – nós e aqueles que velam por nós.

Amarna, 2004
JC

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