quinta-feira, 2 de junho de 2011

Portugal



A razão de haver Portugal é a mesma de haver portugueses, pois que é a alma de uma nação senão a alma do seu povo? E se a alma do povo se realiza, cumpre-se o destino da nação e o do mundo também, pois que tudo é uma unidade. Assim, o primeiro passo a dar para a realização do mundo começa pelo homem e, antes de começar pelo homem, começará em Deus.

O que todos precisamos de compreender é a realidade divina como coisa una e integral. O resto virá por acréscimo, porque Deus falará a linguagem do ser desde que este lhe esteja receptivo e o queira escutar. E de que falará Deus senão de amor e de revelação? Deste modo nasce a ponte viva entre a criatura e o criador, entre a parcialidade e a totalidade.

Toda a nação é uma totalidade e se queremos atingir o seu íntimo, a razão mais profunda do seu existir, temos de a receber dentro de nós, pois tal como o espírito do Senhor nos fala no silêncio da alma, também o espírito da nação nos falará aí se lhe prestarmos atenção. É esta simbiose que pode abrir caminho ao espírito da profecia, o que já será um sinal de entrega naquele em que se revela este dom.

Fernando Pessoa é como um sinal de que a hora chegou: a Mensagem será a cifra desse sinal. Os caminhos que levam à revelação estão por todo o lado. Quatro são os nomes (hoje diríamos, as máscaras) que lhe dão voz, talvez porque o número da estabilidade e do próprio mundo enquanto realidade física, também o seja. Assim o símbolo do poeta se funde no do mundo aparente e juntos tentam a aventura de erguer o véu que vela o mistério. Para a revelação o poeta escreve quatro obras fundamentais: três em verso e uma em drama. Escreverá muito mais, mas serão como que sinais ou despojos, onde porventura o único significado será o de nos indicarem o caminho da Obra.

Fala-se muito da Mensagem, fala-se pouco ou nada do Marinheiro. E todavia é no delírio desse marinheiro perdido em lugar distante (tal mundo físico) que a alma portuguesa se descobre e reencontra. Se sonha com a pátria é para a imaginar novamente, se recorda o mundo é para o recriar. Assim esse marinheiro nos recorda o drama da saudade e nos reconcilia com esse anjo desterrado no mundo por amar demasiado a fragilidade da carne. E se o naufrago não retorna à pátria, transformada agora só em idealismo puro, também o anjo prometeico é condenado a vaguear pelo mundo e a partilhar a alma com todos os homens. Vemos neste a mesma elegia de Maranus, sendo que um se situava nas escarpas do norte e o outro numa ilha que nenhum mapa assinalava. Metáfora de Avalon ou de São Brandão? Em todo o caso, do paraíso perdido pela história e só possível de retomar pelo sonho.

Pessoa, escrevendo Mensagem e Marinheiro (dois MM como as iniciais dessa ordem mariana que tem a nação por raiz) fez um templo com as dimensões da alma nacional. E não apenas daquela que podemos ver (a do momento presente), mas a da poesia e de Deus. E depois uniu-as em si, na sua vida, para que todos soubessem e pudessem partilhar da revelação.

Quanto à sua obra, é grande porque não é sua, é antes mil gerações a falarem nela, a darem sinal de si e do destino que a todos foi e é comum: essa busca do Graal, essa tentativa de se assumir um povo inteiro como o cordeiro de uma aliança renovada, como o penhor de um pacto com as dimensões do próprio mundo, tudo isto tendo por testemunho uma comunidade de nações chamada Europa ou Mundo.

Março 1992
JC

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