quinta-feira, 9 de junho de 2011
Discipulado
O primeiro dever do discípulo é estar disponível para o seu Mestre. O segundo, que deriva deste, é estar disponível para a Obra. O terceiro, que será a consequência de ambos, é estar disponível para os seus Irmãos e pressupostamente para a Humanidade.
Alguns discípulos estão disponíveis para o Mestre, mas totalmente indisponíveis para a Obra, muito mais ainda para os Irmãos ou a Humanidade. Este tipo de discipulado baseia-se numa adesão emocional àquilo que idealmente se considera ser a figura do Mestre: paternalista, protector, continuação da figura do “pai” tal qual a sociedade actual nos habituou. Escusado dizer que este tipo de discipulado vale pouco ou nada.
O discipulado é uma forma de aderirmos conscientemente à nossa auto-transformação e de participarmos nela. Podemos dizer que desde que nascemos fazemos auto-transformação: o que é verdade. Mas fazemo-la contra a nossa vontade, fazemo-la porque as leis do destino agem sobre a matéria e criam-lhe condições que esta não pode contornar. Então a única forma de sobreviver e manter a ideia do “eu pessoal” é aderir. Mas esta aderência é feita sem vontade nem disponibilidade. É verdade que mudamos na aparência, mas porque não aderimos à mudança, porque não a desencadeamos nem a desejamos, na verdade tudo fica na mesma.
No discipulado nada pode acontecer “por acaso” tudo tem de acontecer porque o queremos. Esta adesão faz a diferença e determina a transformação final. É por isso absurdo querer aderir a um mestre feito por encomenda para cada sensibilidade ou criado unicamente para suprir as insuficiências de cada um. E mesmo que o discípulo cultive a ideia de satisfação com este tipo de mestre, mais tarde ou mais cedo tudo ruirá porque na verdade o Mestre só pode agir contra as ideias feitas, contra os aprisionamentos, contra as redomas.
Estar disponível para o Mestre não significa estar disponível para a nossa projecção do que ele é, significa antes assumir os deveres espirituais acima daqueles que a sociedade criou e que nós alimentamos.
Há discípulos que tem dificuldade em perceber o que é servir o Mestre: a esses basta-lhes servir os Irmãos, já que servindo aqueles que o Mestre tomou para si estamos servindo o próprio Mestre.
Há outros que não entendem o que é a Obra e por isso fantasiam. A Obra é tudo que conduz do esboço à estátua acabada, do destino pressentido ao destino assumido, do desejo à sua consumação. E é também todo o acto feito em prol da humanidade.
Servir a Obra é servir o projecto divino em qualquer uma das suas vertentes: humanas, sociais, políticas, cientificas, artísticas, místicas. Mas para servir é preciso estar disponível, e para estar disponível é preciso estar livre, e para estar livre é preciso colocar o interesse colectivo acima do interesse pessoal, a vida dos outros acima da própria.
Há discípulos que aparentemente fazem tudo isto e no entanto não estão servindo a Obra: estão-se servindo dela para auto-envaidecimento. A diferença entre o enaltecimento do ego e o seu despojamento, é subtil. Por isso a maioria dos discípulos falha quando tenta servir o Mestre e realizar a Obra: projectando-se no que fazem, colocando os seus ideais acima do bem colectivo, apropriam-se desse colectivo e mascaram-se com ele, perdendo toda a perspectiva.
Realidade e fantasia misturam-se na percepção. É por isso muito difícil perceber o que é projecção pessoal ou interesse colectivo. Virtualmente nenhum discípulo estará isento de responsabilidades nesta matéria e o mais provável é que em toda a acção em prol dos outros exista uma parte egocêntrica.
No entanto, se é verdade que o ego está presente mesmo na maior dadiva, ele tem de ser permanentemente desmascarado por aquele que escolheu servir a Obra. E é aqui que o discipulado, com todas as suas regras e sacrifícios tem razão de ser.
Poucos Irmãos terão o habito de fazer o exercício da retrospecção nocturna: e no entanto ele é fundamental para desmascarar o ego. Sem auto-recordação, sem análise do que fazemos, tudo se transforma numa vertigem e num acto cego. Também poucos Irmãos estarão servindo através da entrega das suas vidas a algo ou alguém que lhes seja indiferente: já que servir aqueles que amamos nada acrescenta ao que já somos.
Servir não é buscar a auto-satisfação: é contrariá-la. Servir aqueles de quem gostamos não implica sacrifício e portanto nada acrescenta ao que já somos. Se só servirmos a família, os amigos, os conhecidos – então falhamos redondamente. Quem serve não escolhe: entrega-se. Escolher a quem servimos é violar o princípio do próprio serviço e é transformá-lo numa coisa egoísta. É por isso que existindo milhões de discípulos só existiram meia dúzia de almas santas.
Na vida do discípulo cada Mestre coloca os tropeços e as dificuldades que mais rapidamente o farão ganhar as asas da consciência e da liberdade. É por isso que todos estamos sofrendo de algum modo. Doença, falta de dinheiro, falta de amor, aprisionamento: não importa – é sempre o mesmo. Prova e auto-libertação. Mas só se aceitarmos e compreendermos.
De muitas maneiras somos testados nas nossas fragilidades e pouco a pouco erguidos até níveis que não supúnhamos possíveis: em tudo isto a Obra cresce. Mas é sempre contra nós que ela cresce. Não é servindo egoísmos, ou posses, ou aprisionamentos: é destruindo-os.
Estamos todos subindo uma montanha muito íngreme. Necessariamente é preciso ir libertando pesos e amarras, ou em lugar de atingir o cume ficaremos pela encosta. Nesta matéria, como em tudo que é importante na vida, é preciso escolher.
Amarna, Verão de 2003
JC
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